"A Idade Média terá sido, em virtude da predominância
da religião católica, um período de obscurantismo?"
A Idade Média é por vezes considerada qual "noite de
mil anos" que se abateu sobre a civilização, constituindo, pela barbárie
e ignorância de seus homens, verdadeira mancha no decorrer da história.
E' o que, conforme alguns autores, a própria designação
"Idade Média" deveria incutir. Esta foi forjada pelos humanistas do
séc. XVI, que com tal denominação queriam caracterizar o período da língua
latina que vai da Idade Clássica antiga ao Renascimento da mesma no séc. XVI;
entre duas épocas áureas estaria uma fase intermediária ou "média",
fase apagada ou decadente na história do idioma latino.
Em 1688 o historiador
alemão Cristóvão Keller (Cellarius) na sua "Historia Medii Aevi"
(História da Idade Media) adotou pela primeira vez o nome no setor da história
da civilização — o que dava a entender que o período decorrente entre a Idade
Antiga e a Renascença foi igualmente uma época apagada e decadente.
Nem todos os autores, porém, concordam com tal modo de ver.
O historicismo do século passado tinha a Idade Média na conta de período cheio
de realizações construtivas.
Vejamos o que há de objetivo nestas diversas apreciações.
1. O período antigo ou greco-romano da civilização termina
com a ruína do Império Romano, o qual cedeu aos golpes das invasões bárbaras
(Roma caiu em 476). A Europa e a África Setentrional foram ocupadas pelos
germanos invasores, que, após haver derrubado as instituições antigas, eram
incapazes de reconstruir a vida social, pois careciam de valores culturais
correspondentes.
Ora, tendo desaparecido a figura do Imperador no Ocidente, a
única autoridade capaz de tomar as rédeas da situação européia dos séc. V/VII
era a autoridade eclesiástica: o Papa, então, os bispos e os monges se puseram
a preservar da perda total os valores da civilização greco-romana,
utilizando-os na confecção de nova síntese cultural.
Não há dúvida de que a Religião Católica foi altamente
benemérita neste trabalho de reconstrução; criaram-se valores e instituições de
vulto no início e no decurso da Idade Média. Detendo-nos apenas na
história da educação e da cultura, devemos mencionar que foram os clérigos e
monges que asseguraram o ensino primário nas escolas catedrais, monacais e
palatinas (isto é, erguidas respectivamente junto a uma igreja catedral, a um mosteiro,
a um palácio de rei).
Eis alguns documentos a propósito:
Teodulfo, bispo de Orléans no séc. VIII, promulgou a
seguinte lei:
"Os sacerdotes mantenham escolas nas aldeias, nos
campos; se qualquer dos fiéis lhes quiser confiar os seus filhos para aprender
as letras, não os deixem de receber e instruir, mas ensinem-lhes com perfeita
caridade. Nem por isto exijam salário ou recebam recompensa alguma, a não ser
por exceção, quando os pais voluntariamente a quiserem oferecer por afeto ou
reconhecimento" (Sirmond, Concilia Galliae II 215).
Este decreto passou verbalmente para as legislações
eclesiásticas da Inglaterra. Freqüentemente os concílios regionais dos séc.
VIII/IX repetiram semelhantes normas. O III concílio ecumênico do Latrão em
1179, por sua vez, lavrou o seguinte cânon:
"A Igreja de Deus, qual mãe piedosa, tem o dever de
velar pelos pobres aos quais pela indigência dos pais faltam os meios
suficientes para poderem facilmente estudar e progredir nas letras e nas
ciências. Ordenamos portanto que em todas as igrejas catedrais se proveja um
benefício (rendimento) conveniente a um mestre, encarregado de ensinar
gratuitamente aos clérigos dessa igreja e a todos os alunos pobres"
(cân. 18, Mansi XXII 227s).
O IV concílio ecumênico do Latrão (1215) renovou este
decreto.
Também o ensino superior na Idade Média se ministrava por
iniciativa, ou ao menos sob a tutela, de bispos e príncipes cristãos. As
primeiras Universidades foram fundadas por volta de 1100. Constituem uma das
criações mais originais e valiosas da Idade Média: no período greco-romano cada
filósofo e cada mestre de ciências tinham sua escola — o que implicava
justamente no contrário de uma Universidade. Esta na Idade Média reunia mestres
e discípulos de várias nações, os quais constituíam poderosos focos de
erudição.
Até
1440 foram erigidas na Europa 55 Universidades e 12 Institutos de ensino
superior, onde se ministravam cursos de Direito, Medicina, línguas, artes,
ciências, Filosofia e Teologia.
Em 1200 Bolonha contava dez mil estudantes (italianos,
lombardos, francos, normandos, provençais, espanhóis, catalães, ingleses,
germanos, etc). O Papa Clemente V no concílio de Viena em 1311, mandou que se
instaurassem nas escolas superiores cursos de línguas orientais (hebreu,
caldeu, árabe, armênio, etc), o que em breve foi executado em Paris, Bolonha,
Oxford, Salamanca e Roma.
Poder-se-iam multiplicar dados deste gênero. Estes, porém,
já dão a ver que a Idade Média não foi alheia à cultura, justamente em virtude
da influência da Igreja que nela se exerceu.
2. E' preciso, porém, reconhecer uma particularidade da
ciência medieval: os homens da época careciam do aparato técnico necessário a
experiências e investigações precisas; o seu horizonte geográfico e astronômico
também era bastante restrito. Sendo assim, a ciência medieval era levada não
raro a julgar os fenômenos segundo a sua aparência e pouco habilitada a exercer
o senso crítico. Outra conseqüência da penúria de meios de observação é que os
cientistas medievais procediam por dedução mais do que por indução; não podendo
formular as leis da natureza na base de experiências exatas físico-químicas, os
medievais as formulavam recorrendo a princípios especulativos, abstratos, dos
quais julgavam poder deduzir a explicação dos fenômenos da natureza.
Este
trabalho, porém, era em alta escala sujeito a erro: os medievais não raro
julgavam (e nisto se enganavam) que a Bíblia Sagrada podia ser utilizada para
elucidar não somente questões teológicas, mas também temas de ciências
profanas, de sorte que, na falta de outros critérios, apelavam para a Escritura
a fim de resolver problemas de ordem biológica, astronômica, etc. (haja vista o
que ainda no séc. XVII se deu no caso "Galileu", do qual trata
"Pergunte e Responderemos" n.° 4/1958 qu. 12).
Deve-se sublinhar que tal atitude se devia em grande parte à
falta de instrumentos precisos para a investigação da natureza (falta bem
compreensível na Idade Média, já que o homem só aos poucos progride na
conquista do mundo que o cerca).
Não seria justo dizer que os cristãos medievais tinham medo
da ciência empírica e que as autoridades eclesiásticas travavam os estudos a
fim de evitar conflitos de ciência e fé; entre os pioneiros dos avanços
científicos medievais contam-se eclesiásticos, monges e cristãos de valor, como
Sto. Alberto Magno O.P., Rogério Bacon O.F.M., João Peckam O.F.M. (arcebispo de
Cantuária), Dietrich de Freiberg O.P.. Jordão Nemorário, Guilherme de Moerbeke
O.P... .
Muito significativo é um dos últimos depoimentos sobre o
assunto, proferido em 1957 por um grupo de estudiosos que, sem intenção
confessional alguma, escreveram a história da ciência antiga e medieval:
“Parece-nos impossível aceitar a dupla acusação de
estagnação e esterilidade levantada contra a Idade Média latina. Por certo a
herança (cultural) antiga não foi totalmente conhecida nem sempre
judiciosamente explorada;... mas não é menos verdade que de um século para
outro — mesmo de uma geração a outra dentro do mesmo grupo — há evolução e
geralmente progresso.
A Igreja... na Idade Média salvou e estimulou muito mais do
que freiou ou desviou. Por isto, embora só queira apelar para a Antigüidade, a
Renascença é realmente a filha ingrata da Idade Média" (La science antique
et médiévale, sous Ia direction de René Taton, Presses Universitaires de
France. Paris 1957, 581s).
Em particular com referência ao fato de que só a partir de
fins do séc. XIII se começaram a fazer dissecações e observações em cadáveres
humanos, dizem os mencionados estudiosos:
"Como quer que seja, não se poderia aceitar a opinião
um tanto simplista segundo a qual a Igreja teria sido a grande responsável da
estagnação dos estudos de anatomia" (ibd. 580).
Estes testemunhos tão insuspeitos levam a concluir que as
crenças cristãs dos homens medievais não prejudicaram a cultura humana, antes a
favoreceram, apesar das conseqüências errôneas que em matéria de ciências os
medievais julgavam por vezes dever deduzir da sua fé. Dê o observador muito
maior atenção a outra faceta da cultura medieval: a capacidade humana de especulação
filosófica parece ter atingido então o auge da sua clareza e agudez, criando as
famosas Sumas de lógica, ontologia, metafísica da Idade Média.
Estas obras, continuando as dos grandes pensadores gregos
(principalmente de Aristóteles), até hoje são monumentos perenes, não
ultrapassados, da cultura humana. E', sem dúvida, este aspecto positivo que
merece preponderância numa apreciação objetiva da Idade Média.
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