O autor de Galileu – Pelo copernicanismo e pela Igreja é o líbio naturalizado italiano Annibale Fantoli. Doutor em Matemática e Física, e mestre em Filosofia e Teologia, foi professor em universidades japonesas e hoje vive no Canadá. Reconhecido como um dos maiores especialistas do mundo no caso Galileu, ele concedeu uma entrevista exclusiva, por e-mail, ao Tubo de Ensaio sobre seu livro, que foi lançado recentemente no Brasil (leia post acima):
Como o senhor vê a caracterização do caso Galileu como o exemplo mais acabado do conflito entre fé e ciência?
Não aceito a ideia de um embate inevitável entre ciência e fé, como se ele estivesse representado no caso Galileu. Por isso coloquei no livro o título “pelo copernicanismo e pela Igreja”, para mostrar que, para o próprio Galileu, esse choque estava longe de ser inevitável. O objetivo de meu livro (que, para minha alegria, acaba de ser traduzido ao português) é mostrar por que, infelizmente, aconteceu esse conflito.
Foi o resultado da enorme dificuldade de aceitar uma nova visão de mundo que contrastava radicalmente com a visão então aceita, que tinha uma conexão estreita com afirmações da Bíblia. Ansiosa por preservar essa unidade de pensamento, a Igreja Católica se precipitou ao proibir o ensino do copernicanismo em 1616 e, depois, diretamente contra Galileu em 1633.
Foi um erro, como João Paulo II admitiu em 1992.
É claro que isso não significa que não haja conflitos entre fé e ciência, que às vezes são complicados de resolver. Veja, por exemplo, o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas médicas. Para solucioná-los, é preciso haver um diálogo paciente e humilde entre cientistas e teólogos, sem respostas precipitadas ou autoritárias.
Annibale Fantoli é um dos maiores especialistas em Galileu na atualidade. (Foto: Divulgação/Edições Loyola)
Antes das cartas de Galileu a Benedetto Castelli e Cristina de Lorena, que sucesso tiveram outras tentativas de interpretar a Bíblia de forma não-literal?
Santo Agostinho já havia feito isso, como demonstro em meu livro, e durante o período escolástico Santo Tomás de Aquino e outros teólogos precisaram recorrer a interpretações metafóricas da Escritura em várias situações – por exemplo, para aceitar (como eles fizeram) a cosmologia aristotélica, que se opunha a uma visão de mundo segundo a literalidade da Bíblia. Quanto ao copernicanismo, havia teólogos que não o consideravam contrário à Escritura, como o espanhol Diego de Zuñiga e o italiano Foscarini.
Entretanto, a Igreja, afastando-se da mente mais aberta dos teólogos medievais, mostrou na época de Galileu uma aderência mais estrita às interpretações literais. Sem dúvida, isso também foi resultado da disputa com os protestantes, que negavam o primado do Papa como líder da Cristandade argumentando que ele não tinha base na Bíblia, lida de modo literal. Para refutar essa alegação, teólogos católicos (como Bellarmino, que teve um papel importante no caso Galileu) foram obrigados a mostrar que o significado literal da Bíblia, pelo contrário, favorecia o primado papal. Assim, a interpretação literal da Escritura se tornou uma condição para a ortodoxia.
“Galileu diante da Inquisição Romana”, de Cristiano Banti (1857). (Imagem: Reprodução)
Seu livro derruba mitos propagados tanto por apologistas católicos quanto por militantes anticatólicos. Que lado está mais frequentemente enganado a respeito? Quais os mitos mais comuns sobre o caso Galileu, entre estudiosos e o público comum?
Mal-entendidos sobre o caso Galileu são comuns de ambos os lados, mas talvez o lado anticatólico seja o mais equivocado, por causa dos fortes motivos ideológicos que influenciam sua visão dos fatos históricos.
Os anticatólicos tendem a reconstruir o caso Galileu na presunção básica do embate inevitável entre ciência e religião. Isso é evidente nos livros, ainda hoje muito lidos, de John William Draper (History of the Conflict between Religion and Science) e Andrew Dickson White (History of the Warfare of Science with Theology in Christendom). Mais recentemente, também há Talento y Poder, de Antonio Bertran Mari.
Entre os católicos, a vontade de defender a Igreja acaba levando alguns deles a distorcer alguns fatos históricos, como mostrou Walter Brandmüller em Galileo e la Chiesa ossia il diritto ad errare.
Quanto aos mitos, um exemplo claro disso é a suposta tortura de Galileu, entre os anticatólicos.
Do outro lado, eu mencionaria o mito de Galileu como único responsável por sua condenação, por causa de seus defeitos de caráter e de sua pretensão de ter provas irrefutáveis do heliocentrismo – provas que, de fato, ele não tinha.
Sua avaliação final é a de que houve um evidente abuso de poder por parte das autoridades católicas. Em quanto isso afeta a imagem da Igreja?
Sem dúvida o dano foi grande, e pode ser visto pela quantidade de livros, desde a época do Iluminismo, que acusam a Igreja de obscurantismo por causa dos acontecimentos envolvendo Galileu.
Poderíamos dizer que no caso Galileu não há mocinhos nem bandidos?
Exatamente. A parte triste da história é que, exceto por alguns casos (como a acusação de Caccini a Galileu em 1615, feita de muita má-fé), a maioria das pessoas – teólogos, cardeais e até os papas – agiu com boa intenção. Isso foi muito enfatizado pelo cardeal Paul Poupard em 1992, num discurso que antecedeu o de João Paulo II, já mencionado por mim. Infelizmente, grandes erros podem ser cometidos em nome da melhor das intenções.
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