Independentemente do número de territórios soberanos, ainda resta a questão do tamanho do governo. Os liberais clássicos sugerem que o estado seja um mero ‘guarda noturno’, o qual se limita a garantir a liberdade, a propriedade e a paz. Mas o senhor não quer estado nenhum. Por quê?
Os liberais clássicos subestimam a inerente tendência de qualquer arranjo estatal ao inchaço. Essa é uma propensão irreversível. Quem determina quantos policiais, quantos juízes e quantos soldados — todos eles financiados por impostos — haverá em um estado mínimo voltado exclusivamente para a segurança e para os serviços judiciais?
No mercado, onde bens e serviços são demandados e pagos voluntariamente, a resposta é clara: bens e serviços serão produzidos na quantidade e aos preços que os consumidores estiverem dispostos a pagar. Por outro lado, no que tange ao governo de qualquer país, a pergunta “quanto?” será sempre respondida da mesma maneira: quanto mais dinheiro você nos der, mais poderemos fazer por você.
Dado que o governo pode obrigar seus cidadãos a pagar impostos, o governo sempre irá exigir cada vez mais dinheiro e, em troca, ofertará serviços de qualidade cada vez pior, dado que o governo não opera em ambiente concorrencial. A ideia de um estado mínimo, principalmente em uma democracia, é um projeto conceitualmente falho. Estados mínimos jamais permanecem mínimos.
Então não deveria haver estado nem sequer para proteger a propriedade, e para fornecer serviços de segurança e de justiça?
Se o estado for proteger a propriedade utilizando uma polícia estatal, então ele terá de coercivamente coletar impostos. No entanto, impostos são expropriação. Desta maneira, o estado paradoxalmente se transforma em um expropriador protetor da propriedade. Não faz sentido. Ademais, um estado que quer manter a lei e a ordem, mas que pode ele próprio criar leis, será ao mesmo tempo um transgressor e um mantenedor da lei.
E isso tem de ficar claro: o estado não nos defende; ao contrário, o estado nos agride, confisca nossa propriedade e a utiliza para se defender a si próprio. A definição padrão do estado é essa: o estado é uma agência caracterizada por duas feições exclusivas e logicamente conectadas entre si.
Primeiro, o estado é uma agência que exerce o monopólio compulsório da jurisdição de seu território; o estado é o tomador supremo de decisões. Ou seja, o estado é o árbitro e juiz supremo de todos os casos de conflito, incluindo aqueles conflitos que envolvem ele próprio e seus funcionários.
Não há qualquer possibilidade de apelação que esteja acima e além do estado. Segundo, o estado é uma agência que exerce o monopólio territorial da tributação. Ou seja, é uma agência que pode determinar unilateralmente o preço que seus súditos devem pagar pelos seus serviços de juiz supremo. Baseando-se nesse arranjo institucional, você pode seguramente prever quais serão as consequências:
a) em vez de impedir e solucionar conflitos, alguém que possua o monopólio da tomada suprema de decisões irá gerar e provocar conflitos com o intuito de resolvê-los em benefício próprio. Isto é, o estado não reconhece e protege as leis existentes, mas as distorce e corrompe por meio da legislação. Contradição número um: o estado é, como dito, um transgressor mantenedor das leis.
b) em vez de defender e proteger alguém ou alguma coisa, um monopolista da tributação irá invariavelmente se esforçar para maximizar seus gastos com proteção e ao mesmo tempo minimizar a real produção de proteção. Quanto mais dinheiro o estado puder gastar e quanto menos ele tiver de trabalhar para obter esse dinheiro, melhor será a sua situação. Contradição número dois: o estado é, como dito, um expropriador protetor da propriedade.
Então, para quem o senhor gostaria de transferir a tarefa de proteger direitos e propriedade?
Tais tarefas devem ser realizadas por aquelas empresas privadas que comprovadamente demonstrarem competência em um mercado livre e concorrencial — exatamente como ocorre com os outros serviços.
Em uma sociedade de leis privadas, a produção de lei e ordem — de segurança — seria feita por indivíduos e agências livremente financiados, concorrendo entre si por uma clientela disposta a pagar (ou a não pagar) voluntariamente por tais serviços — exatamente como ocorre com a produção de todos os outros bens e serviços. Como esse sistema funcionaria é algo que pode ser mais bem compreendido ao contrastarmos tal sistema com o funcionamento do nosso atual e totalmente conhecido sistema estatista.
Se quisermos resumir em uma única palavra a diferença (e a vantagem) decisiva entre uma indústria de segurança operando em ambiente concorrencial e a atual prática estatista, essa palavra seria: contrato.
O estado opera em um vácuo jurídico. Não existe nenhum contrato entre o estado e seus cidadãos. Não está determinado contratualmente o que de fato pertence a quem; consequentemente, não está determinado o que deve ser protegido.
Não está determinado qual serviço o estado deve fornecer, nem o que deve acontecer caso o estado falhe em cumprir seu dever, e nem qual preço o “consumidor” de tais “serviços” deve pagar.
Ao contrário: o estado determina unilateralmente as regras do jogo, podendo mudá-las, por mera legislação, durante o jogo.
Obviamente, tal comportamento seria inconcebível para fornecedores de serviços de segurança financiados livremente. Apenas imagine um fornecedor de serviços de segurança — seja uma polícia, uma seguradora ou um tribunal de arbitragem — cuja oferta consistisse em algo mais ou menos assim: “Eu não vou contratualmente garantir nada a você; não irei lhe dizer o que estou obrigado a fazer caso você não fique satisfeito com meus serviços. Porém, mesmo assim, eu me reservo o direito de determinar unilateralmente o preço que você deve me pagar por tais serviços indefinidos.”
Qualquer fornecedor de serviços de segurança desse tipo iria imediatamente desaparecer do mercado em decorrência de uma total falta de clientes.
Em vez de agir assim, cada produtor de serviços de segurança, sempre financiado livremente, teria de oferecer um contrato aos seus clientes em potencial. E esses contratos — a fim de serem considerados aceitáveis para consumidores que estão pagando voluntariamente por eles — devem conter cláusulas e descrições totalmente claras, bem como serviços e obrigações mútuas claramente definidos. Cada uma das partes do contrato, ao longo de sua duração e até o vencimento do contrato, estaria vinculada a ele de acordo com seus termos e condições; e qualquer mudança nos termos ou nas condições iria requerer o consentimento unânime de todos os lados envolvidos.
Mais especificamente, para serem tidos como aceitáveis por seus potenciais compradores, esses contratos teriam de conter cláusulas especificando o que será feito no caso de um conflito ou desavença entre a agência de segurança (ou seguradora) e seus segurados, bem como no caso de um conflito entre diferentes agências de proteção e seus respectivos clientes. E, nesses casos, apenas uma solução mutuamente acordada é possível: os lados em discórdia concordariam contratualmente em recorrer a um tribunal de arbitragem comandado por algum agente que seja independente e que goze da confiança mútua desses dois lados.
E quanto a esse agente, ele também deve ser financiado no livre mercado, além de sofrer a concorrência de vários outros arbitradores e agências de arbitragem. Seus clientes — isto é, as seguradoras e os segurados — esperam que ele dê um veredito que seja reconhecido por todos como sendo justo e imparcial. Somente arbitradores capazes de dar vereditos justos e imparciais terão êxito no mercado de arbitramento. Arbitradores incapazes disso, e consequentemente vistos como parciais ou tendenciosos, irão desaparecer do mercado.
E como seriam definidas as leis e como seria sua aplicação?
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que, se não houvesse conflitos entre indivíduos e todos nós vivêssemos em perfeita harmonia, não haveria nenhuma necessidade de leis ou normas. O propósito de leis ou normas é justamente o de ajudar a evitar conflitos que de outra forma seriam inevitáveis. Somente as leis que atingem esse objetivo podem ser chamadas de leis boas. Uma lei que gera conflitos em vez de ajudar a evitá-los é contrária ao propósito intrínseco de qualquer lei —ou seja, trata-se de uma lei ruim, disfuncional e corrupta.
Em segundo lugar, é preciso entender que toda e qualquer sociedade tem como característica intrínseca conflitos de propriedade sobre bens escassos. Conflitos ocorrem porque vivemos em um mundo de escassez, onde os bens são escassos. Afinal, se os bens são escassos, eles não podem ser de todos. É necessário haver propriedade sobre eles. As pessoas entram em choque porque querem utilizar exatamente o mesmo bem de maneiras distintas e incompatíveis. Ou eu venço a briga e utilizo tal bem do meu jeito, ou você vence e utiliza tal bem do seu jeito.
É impossível que nós dois saiamos “ganhadores”. No caso de bens escassos, portanto, são necessárias regras ou leis que nos ajudem a solucionar reivindicações rivais e conflituosas.
Mas não é necessário que seja o estado quem irá resolver tais conflitos.
Logo, todos os conflitos relacionados ao uso de bens escassos, poderão ser evitados apenas se cada bem for propriedade privada, isto é, se cada bem escasso for exclusivamente controlado por um indivíduo (ou grupo de indivíduos) específico — e não por vários indivíduos não-especificados —, e sempre for deixado claro qual bem é propriedade de quem, e qual não é. E, para que os conflitos fossem evitados desde o início da humanidade, por assim dizer, seria necessário ter uma regra determinando que a primeira apropriação original de algum recurso escasso e até então sem dono configuraria propriedade privada.
Sendo assim, existem essencialmente três “leis boas” que podem garantir uma interação humana sem a ocorrência de conflitos (ou a “paz eterna”):
a) aquele que se apropria de algo até então sem dono torna-se o seu proprietário exclusivo (na condição de primeiro proprietário, ele logicamente não entrou em conflito com ninguém, dado que todas as outras pessoas apareceram em cena apenas mais tarde);
b) aquele que produz algo utilizando tanto o seu próprio corpo quanto os bens dos quais se apropriou originalmente torna-se o proprietário único e legítimo do produto de seu trabalho — desde que ele, nesse processo, não danifique a integridade física da propriedade de terceiros; e
c) aquele que adquire um bem de algum proprietário por meio de uma troca voluntária — isto é, uma troca considerada a priori como mutuamente benéfica — torna-se o novo proprietário desse bem.
Portanto, tendo este pano de fundo, imagine agora uma sociedade sem estado. Nesta ordem natural, cada indivíduo que for o primeiro a se apropriar de algo irá se tornar o proprietário original dos bens que ele controla. Quem sugerir o contrário terá o ônus da prova. Neste arranjo, conflitos serão resolvidos por uma autoridade natural. Em vilarejos, esta autoridade natural são aquelas pessoas que forem respeitadas por todos; elas atuarão como juízes. Se houver alguma contenda envolvendo pessoas pertencentes a comunidades distintas, e que recorrerem a juízes distintos, o conflito terá de ser arbitrado no nível superior mais próximo. O que é importante é que nenhum juiz detenha o monopólio da aplicação de leis.
O mesmo raciocínio se aplica a qualquer cidade, de qualquer tamanho, dado que toda e qualquer cidade está dividida em bairros, que funcionam como se fossem vilarejos integrados.
Isso soa muito irrealista…
… mas não é! Apenas veja como as contendas transnacionais são resolvidas atualmente. Em nível internacional, já existe uma espécie de anarquia jurídica, pois não há um governo mundial que a tudo regula. Por exemplo, pense na cidade da Basileia. Ela está localizada em uma tríplice fronteira entre Suíça, França e Alemanha. O que seus cidadãos fazem quando há uma contenda entre eles?
Em primeiro lugar, eles irão contatar suas respectivas jurisdições. Se não houver nenhum acordo, arbitradores independentes são convocados para resolver o caso. Por acaso existem mais contendas entre os cidadãos desta região do que entre cidadãos de Dusseldorf e Colônia? Nunca ouvi falar. Isso mostra que é possível regular disputas interpessoais pacificamente, sem que haja um estado detentor do monopólio do justiça.
Um sistema jurídico sem estado provavelmente está muito além da imaginação das pessoas.
Por quê? Basicamente, são ideias facilmente compreensíveis que, ao longo dos séculos, foram abolidas e extirpadas de nós por apologistas do poder estatal. Foi um grande erro evolucionário substituir a liberdade de escolha das pessoas em termos legais por um monopólio estatal da legislação.
Este atual estado de coisas levou a um arranjo em que, nas eleições, uma horda ignara adquire cargos governamentais e utiliza seu poder legiferante para se enriquecer expropriando a propriedade daqueles que possuem mais riquezas do que eles próprios. Já o chefe de um clã que seja voluntariamente escolhido como um arbitrador de disputas normalmente será um indivíduo já rico que não terá motivos para querer tomar para si a propriedade de terceiros. Caso contrário, ele não seria escolhido voluntariamente como arbitrador.
Como, em um mundo sem a ordem do estado, poderíamos impedir a violação de direitos elementares à liberdade, como o direito à integridade física?
Contra-pergunta: por acaso tais violações são atualmente impedidas pela existência do estado? Como está a violência em países que têm um estado grande e onipresente, como os da América Latina?
Enquanto os humanos forem humanos, sempre existirão áreas em que haverá homicídios e assaltos. Os governos conseguiram melhorar esta situação? Tenho minhas dúvidas. Governos também são geridos por humanos. Porém, ao contrário de uma sociedade sem estado, os líderes detêm um monopólio sobre sua posição de poder.
Isso por acaso não torna estas pessoas piores do que já são? Humanos não são anjos; frequentemente fazem maldades e causam enormes estragos. Por este motivo, a melhor defesa da liberdade e da propriedade é não permitir que ninguém crie um monopólio protegido por lei. Tão logo exista um monopólio protegido por lei, não serão exatamente seres angelicais que surgirão dele.
Suponhamos que sigamos suas ideias e transfiramos as clássicas funções do estado, como a proteção da propriedade e da imposição da justiça, para organizações privadas. Imediatamente teríamos de lidar com o problema de que, também nestas organizações, os homens maus podem assumir o comando e criar cartéis à custa dos cidadãos.
O risco de isso ocorrer é baixo. Cartéis só conseguem sobreviver no longo prazo se o estado protegê-los. Isso ocorre hoje justamente em todos os setores da economia que são controlados por agências reguladoras, as quais existem para impedir que novas empresas entrem no mercado, façam concorrência e perturbem a tranquilidade das empresas já estabelecidas e que são as preferidas do estado.
Cartéis nunca se sustentaram no livre mercado. O que tradicionalmente sempre ocorreu foi o seguinte: as grandes empresas começaram a se unir para dividir o mercado exclusivamente entre elas; no entanto, tal arranjo, por elevar os preços e reduzir a qualidade dos serviços, acaba beneficiando os membros mais ineficientes deste cartel e prejudicando os mais eficientes. Estes percebem que podem conquistar uma maior fatia de mercado fora do cartel. Tão logo eles percebem isso, o cartel se esfacela.
Mas até que isso ocorra, os membros do cartel exploram os cidadãos.
Esse seu raciocínio é o que eu chamo de “se suicidar por medo de morrer”. Se você transfere tal tarefa ao estado, então você está dando a ele logo de partida um monopólio total. E ele certamente irá abusar deste monopólio para restringir a liberdade dos cidadãos.
Em uma sociedade sem estado e com leis privadas, como lidar com o problema das externalidades? Por exemplo, quem iria fazer com que poluidores ambientais também tivessem de arcar com os custos?
Esse problema é fácil de ser resolvido. Basta você conferir à parte prejudicada o direito de tomar medidas judiciais contra o agressor. Ato contínuo, ela poderá processar o causador do estrago, fazendo com que esta lhe dê um pagamento indenizatório. No século XIX, era uma prática comum os cidadãos processarem empresas que danificassem sua propriedade em decorrência de poluição.
Com o tempo, o estado começou a limitar o direito de apelação, tudo com o intuito de proteger determinadas indústrias.
Por isso, e como expliquei anteriormente, é crucial que os direitos de propriedade sejam claramente atribuídos. O princípio básico tem de ser: quem for o primeiro a se apropriar de um local ainda inutilizado e sem dono, adquire os direitos de propriedade.
Por exemplo, se uma indústria construir uma planta que apresente uma intensa emissão de poluentes nas vizinhanças de um determinado bairro residencial, então estes moradores — que chegaram lá primeiro — podem processar a empresa e pedir indenização. Trata-se de um princípio simples que até mesmo crianças conseguem entender. Nos EUA, durante a época da corrida do ouro, vários critérios foram estabelecidos sem a intromissão o estado. E várias pessoas registraram suas queixas contra mineradores. Isso mostra que questões de transgressão de propriedade podem ser resolvidas sem o estado.
E a questão das forças armadas? Não dá para organizar a defesa nacional sem o estado, e ninguém pode ser excluído da segurança fornecida por um exército. Logo, você precisa do estado para obrigar todos os cidadãos a pagarem impostos para financiar as forças armadas.
E quem disse que absolutamente todos os cidadãos querem ser defendidos por um exército? De novo, vivemos em um mundo de escassez. O dinheiro que for gasto com defesa não mais estará disponível para ser gasto em outros propósitos.
Algumas pessoas talvez não queiram ser defendidas e, em vez disso, preferem pagar por férias no Havaí. No caso de um ataque externo, elas provavelmente iriam optar por deixar o país e, sendo assim, elas não precisam de defesa de nenhum exército.
O estado não tem nenhum direito de obrigar estas pessoas a pagar impostos para financiar forças armadas. Em uma sociedade sem estado, as pessoas podem, se assim o desejarem, criar pequenas unidades de segurança, como vigilâncias comunitárias. Podem também se defender por conta própria por meio do uso de armas. Ou podem ainda contratar segurança privada. Elas teriam a liberdade de decidir livremente como iriam gastar seu próprio dinheiro.
entrevista concedida por Hans-Hermann Hoppe à revistaWirtschaftswoche, o principal semanário da Alemanha sobre economia e negócios,
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