Galileu –
Pelo copernicanismo e pela Igreja foi escrito por Annibale Fantoli, italiano nascido
na Líbia, mestre em Filosofia e Teologia, e doutor em Física e Matemática.
Lançado já há alguns anos em uma coleção do Observatório Vaticano, só agora o livro ganhou uma
edição brasileira, pelas Edições
Loyola (meu
exemplar é cortesia da editora). É com essa obra que inauguro a seção Para
sua biblioteca, que trará sugestões de livros sobre ciência e religião.
Mesmo
quem não é familiar com a Astronomia pode tirar muito proveito da leitura, pois
logo no início Fantoli explica a cosmologia aristotélica-ptolomaica (que
colocava a Terra no centro do universo) e conceitos astronômicos como o de
paralaxe (que será importante nas argumentações sobre a posição dos corpos
celestes) de maneira bem didática. Mas o maior valor que eu reconheço no livro
é o de derrubar vários mitos sobre o processo de Galileu. No dia em que saiu o
resultado do vestibular da UFPR, resolvi fazer um teste e, enquanto esperava a
festa aqui na Praça Carlos Gomes, perguntei a alguns vestibulandos o que eles
lembravam daquilo que foi ensinado sobre Galileu no ensino médio. Apenas um
estudante recordou algo: que Galileu tinha sido perseguido por dizer que a
Terra era redonda!
Nem de
longe pretendo que vocês substituam a leitura do livro pelo resuminho que vai
abaixo. Mas alguns fatos sobre o caso Galileu precisam ser conhecidos e
divulgados o quanto antes:
• O
primeiro aspecto a ressaltar é que o sistema copernicano foi recebido com
frieza. Poucos astrônomos aderiram ao heliocentrismo, e o maior deles à época,
o dinamarquês Tycho Brahe, defendia um sistema em que a Terra ficava no centro,
a Lua e o Sol giravam em torno da Terra, e o restante dos planetas girava em
torno do Sol (p. 49-52).
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• Alguns textos católicos sobre o caso Galileu argumentam que o De
Revolutionibus, de Copérnico, não foi colocado no Índice de Livros
Proibidos desde 1543, quando foi lançado, até 1616, e que isso
representaria uma aceitação, ou ao menos uma tolerância, por parte da Igreja em
relação ao copernicanismo. Fantoli discorda, mencionando que ao menos uma
autoridade eclesiástica mostrou disposição em condenar o De Revolutionibus,
mas morreu antes de conseguir seu objetivo. Quanto ao Papa da época, Paulo III, estava ocupado demais com o Concílio de Trento (1545-1563) e, mesmo depois disso, não havia por que se preocupar em demasia com uma teoria que era vista com ceticismo até pelos próprios astrônomos (p. 46).
• Isso nos lembra que o timing de Galileu foi o pior possível. No início do século XVII, a Igreja estava em plena Contrarreforma, uma época de retração em que novas teorias eram naturalmente vistas como suspeitas e os teólogos se agarravam com ainda mais firmeza aos textos da Bíblia e à interpretação dos Padres da Igreja.
Para complicar, especificamente em 1632 (um ano antes da condenação de Galileu), o Papa Urbano VIII era acusado pelos espanhóis de não ser assim tão zeloso na defesa da fé – a acusação era feita dentro de um contexto mais amplo provocado pela Guerra dos Trinta Anos (p. 310). Talvez em outras épocas, de maior abertura e flexibilidade teológica, o copernicanismo fosse melhor recebido pela Igreja.
• Ainda assim, é preciso ressaltar que a Igreja não chegou a condenar o copernicanismo como herético. Em 1616, ele foi declarado “falso e totalmente contrário à Sagrada Escritura” (p. 206). Em 1633, a sentença de condenação (p. 365) retomou as formulações anteriores e considerou Galileu “suspeito de heresia” – embora para o senso comum pareça tudo a mesma coisa, em Teologia os termos têm significados diferentes. E de fato, se considerarmos uma interpretação totalmente literal da Bíblia, o copernicanismo seria mesmo realmente contrário à Sagrada Escritura, que tem trechos como “O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida, se levanta de novo.” (Eclesiastes 1,5).
• E, considerando as palavras da Bíblia, para torná-la compatível com o copernicanismo era necessário rever a interpretação dos textos sagrados. Foi isso que Galileu tentou fazer nas famosas cartas a Benedetto Castelli (p. 151-152) e a Cristina de Lorena (p. 169-187). Mas o Concílio de Trento, preocupado com o livre exame da Bíblia por parte dos protestantes, havia justamente vetado aos leigos a possibilidade de interpretar as Escrituras (p. 154).
Aí está a raiz dos problemas de Galileu com o Santo Ofício em 1616, ocasião em que Galileu não foi condenado, mas apenas advertido pelo cardeal Roberto Bellarmino de que devia abandonar a opinião copernicana; na mesma ocasião, o comissário do Santo Ofício, Michelangelo Segizzi, pediu que Galileu não sustentasse nem ensinasse de modo algum o copernicanismo dali em diante. O astrônomo se submeteu a todos os pedidos.
• Aqui é preciso ressaltar o papel do cardeal inquisidor Bellarmino (canonizado em 1930 e declarado Doutor da Igreja em 1931). Às vezes retratado como intransigente e ignorante, no livro de Fantoli ele aparece demonstrando uma mentalidade mais científica. Em uma carta ao teólogo carmelita Antonio Foscarini, que também defendia o copernicanismo, Bellarmino escreveu: “Se houvesse uma verdadeira demonstração de que o Sol está no centro do universo e a Terra no terceiro céu, e que o Sol não circunda a Terra, mas a Terra circunda o Sol, então seria preciso ir com muita consideração em explicar as Escrituras que parecem contrárias, e antes dizer que não as entendemos do que dizer que é falso o que se demonstra.” (p. 163)
No entanto, Bellarmino acrescentava, na mesma carta, que para ele essa demonstração nunca seria possível, que tal teoria contrariava totalmente a Bíblia e seus comentadores, e que (avançando um pouco o sinal) a imobilidade da Terra era matéria de fé ex parte dicentis – ou seja, considerando que na Bíblia é o Espírito Santo que fala, em contraposição às matérias de fé ex parte objecti, considerando o objeto da declaração. Ou seja, nem tanto ao céu, nem tanto à terra: Bellarmino não era nem o cardeal obtuso retratado por seus detratores, nem estava em posição de dar aula de método científico a Galileu, como dizem os detratores do astrônomo.
• Falando em demonstração e evidência, também é preciso lembrar que, nem em 1616, nem em 1633, Galileu tinha provas irrefutáveis, arrasadoras a favor do copernicanismo. E ele mesmo sabia disso (p. 303-304).
Pior ainda: Galileu considerava que o melhor indício do movimento da Terra era o fenômeno das marés (p. 268), e nisso estava errado (p. 299). Além disso, na época de Galileu, afirmar que a Terra se movia no espaço a grandes velocidades contrariava o senso comum – não apenas porque as pessoas viam, todo santo dia, o Sol, a Lua e as estrelas nascendo e se pondo, mas também porque, se a Terra se movia, então esse movimento deveria ser percebido. Não deveria haver um vento violentíssimo, capaz de tirar tudo do chão? A prova definitiva do movimento da Terra só viria no século XIX, com o pêndulo de Foucault.
• Quanto ao processo de 1633, ele teve seu centro no fato de Galileu ter desrespeitado a ordem de 1616 com o Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo. A situação foi agravada por uma série de fatos:
1. Galileu não mencionara essa ordem quando conseguiu do Papa Urbano VIII (amigo de Galileu) a permissão para escrever o Diálogo (p. 260);
2. quando o Diálogo saiu, o personagem copernicano, Salviati, sempre falava de forma convincente, enquanto o personagem aristotélico, Simplício, perdia todas, e o personagem neutro, Sagredo, costumava se mostrar convencido por Salviati;
3. o argumento preferido de Urbano VIII – o de que Deus, sendo onipotente, poderia dispor as estrelas e os planetas do jeito que quisesse, e que o homem jamais seria capaz de decifrar essa disposição – foi colocado por Galileu na boca justamente de Simplício, o que Urbano VIII entendeu como traição;
4. durante o interrogatório, Galileu se defendeu dizendo que, com o Diálogo, pretendia provar a falsidade do copernicanismo, o que qualquer leitura do livro desmentiria. Apesar disso tudo, Fantoli considera errado jogar toda a culpa pela condenação nas costas de Galileu.
Todo o processo envolveu uma série de intrigas e o embate de gênios fortes, como o de Urbano VIII, que de amigo passou a adversário, guardando um ressentimento que continuaria até mesmo depois da morte do astrônomo. Verdade que Galileu não colaborava, tomando como pessoais algumas críticas ao seu trabalho e usando, em alguns textos, de um sarcasmo que o indispôs com antigos aliados, como os padres jesuítas do Collegio Romano.
• Por
fim, algumas fontes católicas ainda consideram que em outro livro de Galileu, O
Experimentador, ele defendia uma teoria atomista que negaria a doutrina católica
sobre a Eucaristia, e que isso teria influenciado a decisão de 1633. Na
verdade, essa era a interpretação particular do jesuíta Orazio Grassi (p. 254).
O Experimentador chegou a ser denunciado ao Santo Ofício (p. 265), mas
não houve nenhum desdobramento.
Embora a
conclusão de Fantoli seja a de que houve claramente um abuso de poder por parte
da Igreja (e eu concordo com o autor), a narrativa dos fatos desmente muito
mais os preconceitos anticatólicos do que algumas interpretações falsas feitas
por defensores da Igreja. Afinal, Galileu permaneceu católico por toda a vida e
sempre manifestou sua disposição de estar unido à Igreja.
É
justamente esse aspecto de Galileu que mais saltou aos olhos de dom Sérgio
Braschi, bispo de Ponta
Grossa e
tradutor do livro de Fantoli. “Galileu não queria que a Igreja ficasse em uma
posição retrógrada, queria vê-la também na vanguarda científica, e por isso fez
tanto esforço para mostrar que tinha razão”, afirma o curitibano, que se
interessou pela Astronomia ainda na adolescência e, já padre, comprou seu
primeiro telescópio para observar o cometa Halley, em 1986. Chegou a elaborar
programas em calculadora científica para determinar a posição dos astros, e hoje
tem em casa uma série de softwares de Astronomia, acompanha com atenção as
missões da Nasa e visita planetários quando vai à Europa.
Dom
Sérgio Braschi e seu telescópio: paixão de adolescência pela Astronomia voltou
com o cometa Halley. (Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo)
A chance
de traduzir o livro apareceu quando o padre Rafael Biernaski, um ex-aluno de
dom Sérgio que trabalha em Roma, conversava com um sacerdote do Observatório
Vaticano que lhe perguntou se não havia alguém que pudesse traduzir para o
português uma obra sobre Galileu. Sabendo do gosto de dom Sérgio pela
Astronomia, padre Rafael o procurou. “Levei cerca de 5 anos na tradução, usando
as férias e algum tempo livre, levando o notebook para a praia. Alguns
capítulos precisaram ser refeitos, porque no meio do meu trabalho o autor
descobria novos fatos que o levavam a revisar seu livro”, descreve o bispo. Em
2006, dom Sérgio encontrou Fantoli pessoalmente, em Roma. “Foi uma grande
alegria, estivemos juntos no observatório de Castelgandolfo, na residência de
verão do Papa”, conta.
Resumir o
drama de Galileu a uma guerra entre ciência e religião é ser simplista, na
opinião do bispo. “Primeiro, porque Galileu era um homem de fé e fiel à Igreja.
Segundo, porque havia vaidade, inveja, ciúme também entre os cientistas. Mesmo
fora do âmbito religioso tentava-se salvar a cosmologia de Aristóteles e
Ptolomeu. Eles acreditavam, por exemplo, que os corpos celestes eram esferas
lisas.
Quando Galileu mostrou que a Lua tinha crateras, os aristotélicos chegaram
a dizer que essa superfície lunar irregular era coberta por uma camada de vidro
que dava à Lua um formato perfeitamente liso”, explica dom Sérgio.
Havia uma
dificuldade científica e filosófica de absorver certas ideias porque Galileu,
com seu método, derrubava um jeito de pensar que estava totalmente consolidado
na mentalidade da época: o argumento de autoridade. “As questões se definiam de
acordo com o que as autoridades – Aristóteles, a Bíblia, os Padres da Igreja –
diziam sobre aquele assunto. Se Aristóteles dizia que algo era de certa forma,
então era assim e estávamos conversados”, conta dom Sérgio. “Mas Galileu vem e
mostra que o mundo é diferente. Ele derruba o argumento de autoridade e isso
provoca uma crise, uma dúvida generalizada. Se Aristóteles está errado, o que
impede as outras autoridades de também estarem enganadas? O Santo Ofício
percebeu isso e reagiu, era uma época de medo diante de ameaças como essa”,
continua o bispo.
O tempo
mostrou que Galileu tinha razão – mas as descobertas recentes sobre seu
processo desmentem vários mitos e mostram que é impossível dividir os
personagens do episódio em mocinhos e bandidos. Então, por que ainda hoje
existem pessoas (inclusive professores) que continuam a afirmar coisas como
“Galileu foi morto na fogueira”? “Quem tem algum preconceito contra a Igreja
vai perpetuar os mitos porque sequer vai procurar conhecer os fatos, ou os
argumentos contrários. Enquanto o mundo for mundo, essa postura permanecerá”,
avalia dom Sérgio.
Claro, no
fim disso tudo não pode faltar a informação prática: Galileu – Pelo
copernicanismo e pela Igreja pode ser adquirido no site da Editora Loyola (R$ 65) e na Companhia
dos Livros (R$
53,30).
Quer
saber mais sobre Galileu? Leia abaixo a entrevista que Annibale Fantoli concedeu ao
Tubo de Ensaio, veja você mesmo a edição dos documentos do processo de Galileu nos
Arquivos Secretos do Vaticano, e confira a reportagem publicada hoje no Caderno
G sobre o livro de Fantoli (uma errata: no box Desmistificando, onde
saiu escrito “Galileu não foi condenado nem torturado pela Inquisição”,
eu quis dizer “Galileu não foi executado nem torturado pela Inquisição”.
Desculpem a nossa falha).
FONTE: TUBO DE ENSAIO
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