A justiça Anarco Capitalista e as lições medievais.
O Tribunal das Águas de Valencia, na Espanha, já fez mais de mil anos julgando conflitos de irrigação
O tribunal mais antigo da Terra, cujas sentenças são reconhecidas pelo Judiciário de seu país, tem sede na cidade de Valencia, na Espanha, segundo informou a agência AFP.
Mas ele age segundo usos e costumes da Idade Média, época em que foi fundado. O atendimento é imediato, bastando os querelantes se apresentarem.
O Tribunal das Águas de Valencia, na Espanha, já fez mais de mil anos julgando conflitos de irrigação
O tribunal mais antigo da Terra, cujas sentenças são reconhecidas pelo Judiciário de seu país, tem sede na cidade de Valencia, na Espanha, segundo informou a agência AFP.
Mas ele age segundo usos e costumes da Idade Média, época em que foi fundado. O atendimento é imediato, bastando os querelantes se apresentarem.
O julgamento é oral, sem burocracia nem custos, a sentença é pronunciada na hora, não tem apelo e é acatada sem discussão, pois a respeitabilidade do tribunal beira o sagrado.
Trata-se do Tribunal das Águas, fundado em Valencia no século X e que já comemorou mais de um milênio em atividade.
Sua autoridade se estende sobre os conflitos relativos à irrigação na fértil planície situada junto à terceira cidade da Espanha, uma região de laranjais e hortas.
O tribunal está constituído por oito anciãos, escolhidos pelas oito comarcas irrigadas. E se reúne na Porta dos Apóstolos da catedral gótica da cidade, em espaço delimitado especialmente para as suas sessões.
O horário de atendimento é todas as quintas-feiras, quando os sinos da torre Micalet da catedral batem meio-dia.
Os oito juízes em simples toga preta de outros séculos assumem suas poltronas de inspiração medieval, e um oficial de justiça começa a chamar os eventuais querelantes, enunciando o nome das respectivas comunidades.
Os reclamantes então ingressam na área reservada ao tribunal, acompanhados ou não de seus advogados, e eventualmente de algum policial que foi testemunha dos fatos.
Ouvidas as posições das partes, os juízes trocam opiniões sobre o caso, e o chefe do tribunal emite a sentença, prontamente obedecida.
Uma pequena multidão acompanha o julgamento que, por sinal, se faz em dialeto valenciano, parecido com a língua espanhola.
“A mais antiga instituição de justiça existente na Europa” está inscrita no patrimônio cultural imaterial da UNESCO.
Sua existência remonta pelo menos ao século X, quando a região fazia parte do califado de Córdoba, e no lugar da atual catedral gótica – a cuja sombra se reúne – havia uma mesquita.
Os litígios são mais numerosos nas épocas de seca, existindo uma vasta jurisprudência acumulada nas mentes e nas almas dos veneráveis juízes.
Os usos e costumes estão também consignados num código específico, explica o historiador Daniel Sala, grande conhecedor da instituição.
Um caso recente típico envolveu um agricultor com trinta anos de atividade que viu a água chegar poluída por resíduos de cimento e de tinta jogados no canal por um vizinho que reformava sua casa.
Tendo ouvido os argumentos das partes, após breve debate o presidente pronunciou a fórmula consagrada, condenando o vizinho poluidor. Este aceitou a sentença com o protocolar “correto”, e pagou logo a multa de 2.000 euros.
O tribunal exerce sua jurisdição sobre dez mil agricultores que dependem da irrigação, os quais escolhem o representante de cada comunidade.
As sentenças são reconhecidas pela Justiça Civil espanhola e o tribunal “foi respeitado pelos reis, pelos presidentes das Repúblicas, pelas ditaduras, em poucas palavras, por todo o mundo”, sublinhou o historiador Daniel Sala.
Todos os anos surgem centenas de causas. Porém, pouquíssimas delas – entre 20 e 25 – chegam a este tribunal. Há certos dias em que ninguém se apresenta perante os juízes reunidos.
O motivo é admirável: é tanta a respeitabilidade do tribunal que os querelantes acabam se reconciliando na própria praça, antes mesmo de serem convocados.
As partes ingressam no recinto delimitado pela grade de ferro para defender sua causa
“Para um agricultor é quase uma ofensa vir aqui”, explica José Antonio Monzó, que supervisiona o respeito das regras na comunidade de Quart.
Enrique Aguilar, representante da comunidade de Rascanya e vice-presidente do tribunal, calcula que 90% dos casos se resolvem pela conciliação, às vezes poucos minutos antes de comparecer diante dos juízes sentados.
“Nós tentamos agir de maneira que ninguém chegue a ter que ser julgado aqui”, explica Aguilar diante da Porta dos Apóstolos.
“Durante a ocorrência, o acusado pode esbravejar e declarar-se não culpado. Mas quando chega aqui, ele pede a conciliação e finalmente paga a sanção imposta”, conta Manuel Ruiz, presidente do tribunal e representante da comunidade de Favara.
O Tribunal das Águas de Valencia é um último vestígio da justiça medieval em matérias trabalhistas.
Nessas causas, os julgamentos normalmente eram feitos por tribunais específicos das corporações de ofícios, onde todos se conheciam entre si e as respectivas famílias, sabiam o que cada um fazia ou o que seus antepassados fizeram, viviam o problema na vida quotidiana, ouviram as gerações velhas dirimindo as querelas, tudo num ambiente de sensatez, respeito mútuo, tradição e sabedoria cristã.
Esse poder de julgamento das corporações populares é um dos aspectos mais simpáticos da era medieval e dos menos conhecidos hoje.
E talvez dos mais necessitados. No Brasil, por exemplo, foram abertas em 2016 mais de três milhões de causas trabalhistas – é o nº 1 do mundo –, muitas delas introduzidas por advogados especializados em criá-las onde talvez não existam.
Quantos milhões de páginas foram redigidos para alimentar esses processos? Quantos milhões ou bilhões de reais foram gastos pela formidável máquina administrativa que exige o atendimento dessa avalanche de causas?
Quanto tempo de trabalho foi empregado por advogados, juízes, litigantes e funcionários da Justiça para elucidar esses milhões de pendências anuais? Quanto tempo tiveram os lesados de esperar até ouvirem a sentença? Quantos apelos.... quantos ... etc., etc.
Talvez nunca ninguém tenha tentado fazer uma estatística. E, se o fez, deve ter colhido números de desmaiar.
Não é de espantar que a imagem da Justiça, malgrado o esforço colossal de juízes e funcionários, esteja continuamente se degradando.
Que diferença com a Justiça impregnada de espírito familiar e de velhas e sábias tradições da Idade Média!
Artigo de Luis Dufaur
Escritor, jornalista, conferencista de política internacional,
sócio do IPCO.
Trata-se do Tribunal das Águas, fundado em Valencia no século X e que já comemorou mais de um milênio em atividade.
Sua autoridade se estende sobre os conflitos relativos à irrigação na fértil planície situada junto à terceira cidade da Espanha, uma região de laranjais e hortas.
O tribunal está constituído por oito anciãos, escolhidos pelas oito comarcas irrigadas. E se reúne na Porta dos Apóstolos da catedral gótica da cidade, em espaço delimitado especialmente para as suas sessões.
O horário de atendimento é todas as quintas-feiras, quando os sinos da torre Micalet da catedral batem meio-dia.
Os oito juízes em simples toga preta de outros séculos assumem suas poltronas de inspiração medieval, e um oficial de justiça começa a chamar os eventuais querelantes, enunciando o nome das respectivas comunidades.
Os reclamantes então ingressam na área reservada ao tribunal, acompanhados ou não de seus advogados, e eventualmente de algum policial que foi testemunha dos fatos.
Ouvidas as posições das partes, os juízes trocam opiniões sobre o caso, e o chefe do tribunal emite a sentença, prontamente obedecida.
Uma pequena multidão acompanha o julgamento que, por sinal, se faz em dialeto valenciano, parecido com a língua espanhola.
“A mais antiga instituição de justiça existente na Europa” está inscrita no patrimônio cultural imaterial da UNESCO.
Sua existência remonta pelo menos ao século X, quando a região fazia parte do califado de Córdoba, e no lugar da atual catedral gótica – a cuja sombra se reúne – havia uma mesquita.
O oficial de Justiça convoca os eventuais querelantes por comarca
Os casos julgados pelo tribunal tem uma realidade muito tangível e versam sempre sobre o uso das águas, incluindo cortes abusivos, desvios mal feitos, ou questões análogas.Os litígios são mais numerosos nas épocas de seca, existindo uma vasta jurisprudência acumulada nas mentes e nas almas dos veneráveis juízes.
Os usos e costumes estão também consignados num código específico, explica o historiador Daniel Sala, grande conhecedor da instituição.
Um caso recente típico envolveu um agricultor com trinta anos de atividade que viu a água chegar poluída por resíduos de cimento e de tinta jogados no canal por um vizinho que reformava sua casa.
Tendo ouvido os argumentos das partes, após breve debate o presidente pronunciou a fórmula consagrada, condenando o vizinho poluidor. Este aceitou a sentença com o protocolar “correto”, e pagou logo a multa de 2.000 euros.
O tribunal exerce sua jurisdição sobre dez mil agricultores que dependem da irrigação, os quais escolhem o representante de cada comunidade.
As sentenças são reconhecidas pela Justiça Civil espanhola e o tribunal “foi respeitado pelos reis, pelos presidentes das Repúblicas, pelas ditaduras, em poucas palavras, por todo o mundo”, sublinhou o historiador Daniel Sala.
Todos os anos surgem centenas de causas. Porém, pouquíssimas delas – entre 20 e 25 – chegam a este tribunal. Há certos dias em que ninguém se apresenta perante os juízes reunidos.
O motivo é admirável: é tanta a respeitabilidade do tribunal que os querelantes acabam se reconciliando na própria praça, antes mesmo de serem convocados.
As partes ingressam no recinto delimitado pela grade de ferro para defender sua causa
“Para um agricultor é quase uma ofensa vir aqui”, explica José Antonio Monzó, que supervisiona o respeito das regras na comunidade de Quart.
Enrique Aguilar, representante da comunidade de Rascanya e vice-presidente do tribunal, calcula que 90% dos casos se resolvem pela conciliação, às vezes poucos minutos antes de comparecer diante dos juízes sentados.
“Nós tentamos agir de maneira que ninguém chegue a ter que ser julgado aqui”, explica Aguilar diante da Porta dos Apóstolos.
“Durante a ocorrência, o acusado pode esbravejar e declarar-se não culpado. Mas quando chega aqui, ele pede a conciliação e finalmente paga a sanção imposta”, conta Manuel Ruiz, presidente do tribunal e representante da comunidade de Favara.
O Tribunal das Águas de Valencia é um último vestígio da justiça medieval em matérias trabalhistas.
Nessas causas, os julgamentos normalmente eram feitos por tribunais específicos das corporações de ofícios, onde todos se conheciam entre si e as respectivas famílias, sabiam o que cada um fazia ou o que seus antepassados fizeram, viviam o problema na vida quotidiana, ouviram as gerações velhas dirimindo as querelas, tudo num ambiente de sensatez, respeito mútuo, tradição e sabedoria cristã.
Esse poder de julgamento das corporações populares é um dos aspectos mais simpáticos da era medieval e dos menos conhecidos hoje.
E talvez dos mais necessitados. No Brasil, por exemplo, foram abertas em 2016 mais de três milhões de causas trabalhistas – é o nº 1 do mundo –, muitas delas introduzidas por advogados especializados em criá-las onde talvez não existam.
Quantos milhões de páginas foram redigidos para alimentar esses processos? Quantos milhões ou bilhões de reais foram gastos pela formidável máquina administrativa que exige o atendimento dessa avalanche de causas?
Talvez nunca ninguém tenha tentado fazer uma estatística. E, se o fez, deve ter colhido números de desmaiar.
Não é de espantar que a imagem da Justiça, malgrado o esforço colossal de juízes e funcionários, esteja continuamente se degradando.
Que diferença com a Justiça impregnada de espírito familiar e de velhas e sábias tradições da Idade Média!
Artigo de Luis Dufaur
Escritor, jornalista, conferencista de política internacional,
sócio do IPCO.
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