Essa questão sempre é levantada por aqueles que defendem um estado para a sua proteção. Crianças geram muitas questões complexas no que tange a moral libertária. Sim, os estatistas amam envolvê-las para gerar as mais difíceis questões para então defender o estado como se fosse seu herói. Afinal, como ficam os direitos das crianças?
Primeiramente, vamos entender o que é uma criança: criança nada mais é do que uma pessoa tutelada por adultos e que está em fase pré-púbere. Uma pessoa que não está tutelada não pode ser considerada criança. Quais os direitos dela? Basicamente os mesmos dos adultos. A criança, porém, é tutelada, logo, estará sujeita a zeladoria do tutor. Ela deve ter os seus direitos preservados e os seus tutores têm o dever moral de protegê-los, mas eles também têm o direito de abrir mão da tutela. As razões disso serão mostradas mais tarde. O assunto é impossível de ser abordado sem sofrer ataques de todos os lados, uma vez que ele é espinhoso e os positivistas acreditam piamente que o estado é necessário para proteger as crianças. Seria mesmo? Podemos dizer que não. Para explicar melhor resolvi dividir o artigo em tópicos. Comecemos:
O período pré-natal
Um tema controverso que gera divergência até mesmo entre os libertários: a gravidez pode ser interrompida? Caso a mãe queira expulsar o feto e a expulsão não provocar sua morte, a gravidez pode ser interrompida. A partir do momento que a mãe não quiser o feto mais ali, ela pode expulsá-lo pelo fato de ele já estar sendo coercitivo, mas não pode matá-lo. Em outras palavras, ele pode até passar a ser parasitário, como Rothbard descreveu. [1] Então, vem a pergunta: se o feto pode se tornar coercivo e parasitário, por que não abortar? Em outras palavras, por que a mãe não pode expulsá-lo de sua propriedade?
Antes de mais nada vamos entender que a defesa do Rothbard ao direito da mulher abortar não é exatamente uma defesa ao direito da mulher matar o feto. Rothbard deixa claro que a mulher tem que ter o direito de expulsar o feto e em nenhum momento ele fala em matá-lo ou multilá-lo. Porém, Rothbard não contraria expulsões que resultam na morte do feto. Rothbard com relação ao aborto foi não considera o aborto uma agressão à autopropriedade do feto pelo fato de simplesmente não reconhecê-lo, [2] que mesmo não sendo dotado de capacidade argumentativa ele é um potencial desenvolvedor de tal capacidade. [3] Hans-Hermann Hoppe na introdução de A Ética da Liberdade deixou claro que Rothbard não disse em nenhum momento que o aborto é moralmente aceitável. Numa sociedade libertária uma mulher que aborta pode muito bem ser boicotada pela atitude ou até mesmo expulsa dependendo da rejeição da sociedade. Porém, ele não mostrou oposição à prática, ainda que ele sugira qualquer punição que não seja física. Hoppe escreveu:
O direito de se fazer um aborto não implica que se possa fazer um aborto em qualquer lugar. Na verdade, não há nada que impeça que proprietários privados e associações discriminem e punam aborcionistas por todos os meios que não envolvam punições físicas. Famílias e proprietários são livres para proibir um aborto em seu próprio domínio e podem entrar em um acordo restritivo com outros proprietários com o mesmo propósito. Além disso, todo proprietário e toda associação de proprietários é livre para demitir ou deixar de contratar e se recusar a fazer transações com um aborcionista. Pode realmente vir a ser o caso que local civilizado algum possa ser encontrado e que uma mãe tenha que recorrer ao infame “mercado-negro” para fazer um aborto. Não só não haveria nada errado nesta situação, como seria positivamente moral ao aumentar o custo da conduta sexual irresponsável e ajudar a reduzir o número de abortos. Em contraste, a decisão da Suprema Corte não só foi ilegítima por expandir sua jurisdição estatal central às custas da dos governos estaduais e locais – e ao final das contas, da legítima jurisdição de todo proprietário em relação à sua propriedade – mas também foi também positivamente imoral ao facilitar a acessibilidade e disponibilidade do aborto. [4]
Para os libertários pró-vida o aborto se caracteriza basicamente pelo conflito entre os direitos de autopropriedade da mãe e do feto. O feto de um ser humano, como qualquer indivíduo, possui direitos, afinal, ele dará origem a uma pessoa. A mãe pode expulsar qualquer um de sua propriedade; isso é um direito dela. De fato, isso dá a ela o direito de expulsar o feto do seu corpo. Porém, os eviccionistas acreditam que essa expulsão não pode ocorrer caso ocorra a morte do feto. [5]
Os utilitaristas geralmente para argumentar a favor do aborto usam dados estatísticos para provar a legitimidade dessa prática. Steven D. Levitt, por exemplo, alega que a legalização do aborto nos Estados Unidos reduziu a criminalidade significativamente no país [6] e como um mal menor pode evitar males piores. O problema é que esse tipo de argumento não deve ser o foco numa discussão sobre o assunto. Os fins utilitaristas em discussão sem usar a ética pode levar para qualquer conclusão. Libertários jusnaturalistas — sejam os a favor do aborto, como o Rothbard, ou os que são contra, como o Thomas Woods [7] — vão sempre discutir usando os princípios éticos.
A criação, ou não
O filho nasceu. Podemos dizer que há uma obrigação moral dos pais cuidarem da melhor maneira possível de seus filhos, mas seria ilegítimo como uma obrigação legal. Devemos entender o seguinte: a partir do momento em que os pais têm o seu filho, eles não contam (e nem tem a obrigação de contar porque não possuem poder de premonição) com possíveis casualidades da vida. Existem muitas situações que impossibilitam a zeladoria dos pais, e a pergunta que fica é: ambos os pais abrirem mão da guarda do filho é legítimo? Sim, é legítimo. Caso contrário, não existiriam adoções.
As adoções podem ser feitas entregando ou vendendo os direitos da guarda do filho [8] diretamente pra alguém ou alguma instituição. Muitas pessoas condenam a venda (apesar da entrega ser feita gratuitamente) pelo fato de parecer ter algum fim lucrativo. Sim, há um lucro monetário nessa parte, mas isso serve para compensar a perda da guarda do filho. Muitos ainda afirmam que muitas mulheres teriam filhos indiscriminadamente para vendê-los como se fossem bananas, mas isso o mercado resolveria: ora, se as mulheres fizessem isso – afinal, o corpo é delas, assim como os seus problemas -, o que aconteceria?
A oferta de crianças ficaria muito maior que a demanda, o que resultaria numa queda de preço e isso tiraria qualquer incentivo para as mulheres fazerem isso. Mas vem outra questão: a dos riscos. Os pais poderiam vender a criança para pedófilos ou outras pessoas mal intencionadas. Como se já não existisse o risco, mesmo com o estado ou de os pais entregarem a criança para alguém mal intencionado disposto a driblar a burocracia estatal. Riscos sempre existem desde a hora em que há a fecundação. Os pais não sabem o futuro e nem contam com uma possível situação em que a criação do bebê possa se tornar inviável. No caso dos riscos de vender a criança para uma pessoa mal intencionada, devemos dizer que a burocracia estatal não ajuda a proteger as crianças de abusos, já que condena muitas delas à indigência. Não me refiro apenas ao risco da criança ser entregue a psicopatas, mas o estado, desde o momento em que regula métodos anticoncepcionais até o controle de natalidade, já condena a criança a esses riscos, fora o delas de se tornarem marginais. Portanto, ao justificar uma regulação estatal em cima das adoções ou mesmo a venda da guarda é ignorar também tudo o que o estado atrapalha. Há risco? Há, mas também não justifica o risco de nos submetermos ao estado como se ele realmente salvasse as crianças dele. Ele põe muito mais crianças sob tais riscos com a sua burocracia.
Deve-se lembrar ainda que Rothbard sempre falou em venda dos direitos de guarda da criança, não em venda de criança, ainda que use termo esporadicamente para facilitar a linguagem, mas o correto é a venda dos direitos de guarda. Rothbard disse:
Eles podem entregar o filho para adoção ou podem vender os direitos sobre a criança em um contrato voluntários. Em resumo, temos que nos defrontar com o fato de que a sociedade genuinamente livre terá um próspero livre mercado de crianças. Superficialmente isto parece monstruoso e desumano. Mas uma reflexão mais apurada irá revelar o humanismo superior de tal mercado. Pois temos que constatar que já existe um mercado de crianças hoje, mas, já que o governo proíbe a venda de crianças por um preço, os pais hoje podem apenas doar seus filhos a uma agência de adoção licenciada sem cobrar nada. [9]
A razão de não existir de fato a venda de crianças num mercado voluntário de crianças está no fato das mesmas terem o seu direito à autopropriedade. Elas podem ter as suas guardas vendidas, mas não os seus corpos. Quem compra os direitos de guarda de uma criança passa a cuidar dela, mas não pode cometer nenhum tipo de abuso, uma vez que isso viola a sua autopropriedade, que, como dever moral do tutor, deve ser preservada.
Outra maneira que os pais têm de abrir mão da criação da criança é simplesmente abandonando-a. Sim, largando-a em algum lugar na esperança de que alguém vá resgatá-la e cuidar dela. Tal atitude, por incrível que pareça, tem a sua legitimidade, se ficar claro que é pelo bem da criança. Suponhamos que não há parentes e nem casas de adoções e a mãe não tem como sustentar o bebê devido a algumas casualidades. Ela tem o direito de abandonar o bebê? Obviamente que sim, ela tem o total direito de abandonar o bebê.
Desde que o abandono ocorra em um lugar onde claramente há grande possibilidade de alguém aparecer para ajudar a criança. Ou seja, em um lugar visível. Não me refiro à beira de uma estrada deserta ou num bosque. Abandoná-lo em um lugar não visível implica em matá-lo, pois é a mesma coisa que impossibilitar a criança de ser encontrada ou mesmo impedir que terceiros adotem uma criança cujos pais abriram mão da guarda. Quando não há alternativas e se a manutenção da guarda do bebê não se mostrar viável, não há porque os pais não fazerem isso, já que, mesmo considerando os riscos, praticamente não há diferença em tentar de maneira fustrada cuidar do bebê ou abandoná-lo. Walter Block deixa isso bem claro:
Os pais, ao assumirem o papel da paternidade ou maternidade, constituem uma espécie de “zeladores” da criança. E mesmo se o pai ou mãe deseja abandonar esse papel que ele ou ela adotou voluntariamente ou nem chegar a assumir essa obrigação, ele ou ela são completamente livres para fazê-lo. A mãe pode oferecer o bebê para adoção ou, na velha tradição da lei natural, deixar o bebê nas escadarias de uma igreja ou instituição de caridade especializada em cuidar de crianças. [10]
Claro que estamos sempre lembrando que uma coisa é a moralidade do ato, e outra é a sua legalidade. Dependendo do ato, abandonar uma criança pode ou não ser imoral, mas proibir legalmente o abandono sempre será uma agressão e portanto uma ação antiética, uma vez que ignora todas as possibilidades possíveis.
A eutanásia e a negligência infantil
Em fevereiro de 2014, a Bélgica aprovou a legalização da eutanásia em crianças. [11] Isso quer dizer muitas coisas, e podemos dizer que a legalização implica que todos devem colaborar com o ato dos pais decidirem matar o seu próprio filho se ele for considerado um portador de uma enfermidade terminal. A eutanásia costuma ser aplicada em momentos de pouca razão e muita emoção, ainda mais quando se envolve crianças. No caso de um adulto poderíamos considerar legítimo o suicídio assistido, mas não podemos dizer o mesmo quando se trata de uma criança, já que ela certamente não tem capacidade para julgar a sua situação. Apesar de que sem ou com estado, pais desesperados podem tomar atitudes precipitadas. Mas há como abreviar o sofrimento de uma criança com uma enfermidade irreversível e terminal sem agredi-la? Sim, simplesmente sedá-la e deixar que a morte ocorra naturalmente.
Aplicar uma dose de cianeto de potássio na criança para abreviar o seu sofrimento violaria o princípio da não-agressão. Muitas vezes, a criança sequer está consciente para dizer se quer realmente isso, e sendo os pais os zeladores da criança, cabe a eles decidir o melhor para o filho sem a necessidade de tomar uma ação que implique em acabar com a vida dela. A prática da ortotanásia, então, seria legítima, uma vez que os pais, ao resolverem simplesmente interromper o tratamento para deixar a criança morrer naturalmente não seria uma agressão, já que optaram por uma causa natural que poderia muito bem acontecer sem eles terem culpa nenhuma. Porém, cabe uma observação: os pais não podem impedir ninguém de dar continuidade ao tratamento caso decidam o interromper.
Rothbard disse que os pais têm o direito de deixar o filho morrer de fome, estando deformado (assim, podemos entender que ele pode ter dito que aa criança pode estar doente, em estado vegetativo ou qualquer invalidez irreversível) ou não. [12] A alegação dele gerou muita polêmica no meio libertário, mas vamos analisar o contexto. O próprio autor já explicou que numa sociedade libertária a única obrigação dos pais é não violar o princípio da não-agressão. Para ele, os pais não poderiam aplicar castigos físicos nos filhos, não teriam a obrigação de alimentá-los, educá-los ou vesti-los. Apesar de que ao fazer isso os pais já teriam aberto mão da propriedade da guarda da criança, logo, ninguém deve ser impedido de manter a criança viva ou mesmo criá-la. Walter Block, em seu Defendendo o Indefensável, já contraria Rothbard. Nas últimas páginas do livro, Block disse que os pais não devem deixar o seu filho morrer de fome porque ao terem decidido criá-lo, eles adquiriram um “título de zeladoria”. Portanto, os pais têm a obrigação de, pelo menos, manter a criança viva, o que inclui alimentá-la.
Não alimentar uma criança a ponto de deixá-la morrer constitui necessariamente numa agressão? Não, vamos recapitular as palavras do Rothbard no que certamente é o mais polêmico de sua obra:
Aplicando nossa teoria ao relacionamento entre pais e filhos, o que já foi dito significa que os pais não têm o direito de agredir seus filhos, mas também que os pais não deveriam ter a obrigação legal de alimentar, de vestir ou de educar seus filhos, já que estas obrigações acarretariam em ações positivas compelidas aos pais, privando-os de seus direitos. Os pais, portanto, não podem assassinar ou mutilar seu filho, e a lei adequadamente proíbe um pai de fazer isso. Mas os pais deveriam ter o direito legal de não alimentar o filho, i.e., de deixá-lo morrer. A lei, portanto, não pode compelir justamente os pais a alimentar um filho ou a sustentar sua vida. (Novamente, se os pais têm ou não têm mais propriamente uma obrigação moral ao invés de uma obrigação legalmente executável de manter seu filho vivo é completamente outra questão.) Esta regra nos permite resolver aquelas questões complicadas como: será que os pais deveriam ter o direito de deixar um recém-nascido deformado morrer (e.g., ao não alimentá-lo)?
A resposta é claramente sim, resultando a fortiori do direito mais amplo de permitir que qualquer recém-nascido, deformado ou não, morra. (Não obstante, como iremos ver a seguir, em uma sociedade libertária a existência de um livre mercado de bebês irá fazer com que tal “desprezo” seja mínimo.) [13]
A impressão que muita gente tem com esse trecho é a de que o Rothbard defende um infanticídio. Não é bem assim. Rothbard certamente foi o primeiro libertário a ter coragem de abordar essa questão dentro de uma visão radical. Não tem o menor sentido existir uma obrigação legal que obrigue os pais a alimentarem os seus filhos. No mesmo capítulo, Rothbard explica:
Examinemos as implicações da doutrina de que os pais deveriam ter uma obrigação legalmente executável de manter seus filhos vivos. O argumento a favor desta obrigação contém dois componentes: que os pais criaram o filho através de um ato proposital feito por livre escolha; e que a criança está temporariamente indefesa e não é uma autoproprietária.
Se considerarmos primeiro o argumento do desamparo, então antes temos que considerar a questão geral de que é uma falácia filosófica afirmar que as necessidades de A justamente impõem a B obrigações coercivas de satisfazer estas necessidades. Porque, deste modo, os direitos de B são violados. Segundo, se é possível afirmar que uma criança indefesa impõe obrigações legais a alguém, por que especificamente a seus pais e não a outras pessoas? O que os pais têm a ver com isso? A resposta, obviamente, é que eles são os criadores da criança, porém isto nos leva ao segundo argumento, o argumento da criação.
Então, considerando o argumento da criação, ele imediatamente exclui qualquer obrigação de uma mãe manter vivo um filho que tenha sido resultado de um ato de estupro, já que este não foi um ato livremente empreendido. Ele também exclui qualquer obrigação de um padrasto, madrasta, tutor ou pais adotivos que não participaram de maneira alguma da criação da criança. [14]
Portanto, ninguém deve ter nenhuma obrigação legal para com nenhuma criança, pelo motivo de que os direitos dos pais são violados e que porque se os pais tiverem obrigações legais para com elas, eles teriam de sustentá-las independentemente das suas condições e disponibilidade de recursos. Vejamos, por exemplo, o caso de uma família no interior da Etiópia que não tem condições de alimentar o seu filho ou então pais que para curar o seu filho de rara doença terem que abrir mão de tantos recursos que podem ficar sem ter o que comer. Seria justo, nessas horas roubar outras pessoas para curar o filho desses pais ou alimentar o filho da família etíope? Certamente que não. Imagine se a doença rara citada de repente deixa de ser rara e se torne uma epidemia. Ficaria inviável tratar as crianças usando os recursos alheios, mas a questão ainda não é essa. Roubo sempre será roubo mesmo que seja para tal fim.
Podemos concluir que Rothbard não defende que é moralmente correto pais deixarem o seu filho morrer de fome, mas que não é legítimo que pais que façam isso sejam legalmente punidos, uma vez que devemos analisar todo o contexto da situação. Porém, seria claramente uma agressão se tais pais impedirem a criança de ser alimentada ou impedi-la de buscar novos tutores para que cuidem dela.
A educação e o trabalho
Nenhuma criança deve ser impedida de estudar ou trabalhar, assim como também não pode ser proibida. Apenas os pais, como tutores, podem fazê-lo. O estado comete erro duplo ao proibir a criança de trabalhar e obrigá-la a estudar. As crianças devem ser livres pra optar por uma das duas opções ou mesmo pelas duas ou nenhuma das duas. Impedir a criança de trabalhar leva a diversos problemas, a possibilidade de impedi-la de se tornar um adulto de sucesso, fazê-la se tornar improdutiva ou buscar mais qualificações. Muitos dirão que isso não seria necessário, já que muitos ricos não trabalharam quando crianças. Porém, isso não justifica tal proibição, já que impedir a criança de trabalhar não apenas a impede de ter o sucesso na fase adulta como também pode impedi-las de sair da miséria e ajudar os seus pais, que podem estar impossibilitados de trabalhar. O trabalho infantil nunca foi um mal quando feito voluntariamente. O problema maior é quando elas são obrigadas a fazer isso, seja por parte dos pais como por parte do estado, ainda que o estado tenha feito exatamente o oposto: proibi-las de fazer isso. A criança deve ter sim, o seu direito de obter a sua renda.
Muitos ainda argumentam que o lugar da criança é na escola e não no trabalho. Afinal, quem definiu isso? Por qual motivo a criança deve ser obrigada a estudar numa escola? Não existem bons argumentos que se sustentem quando o assunto é defender a educação compulsória. Ela não apenas impede a criança de optar ser educada em casa usando a sua autodidaxia como ainda impede aquelas que são maltratadas na escola de se livrarem do problema. Fora que é absolutamente nada produtivo insistir em mandar uma criança indisposta estudar. Será um gasto totalmente desnecessário para todos, principalmente para os pais. Quando a criança tem a opção de não frequentar a escola, ela pode simplesmente trabalhar dando mais opções para as empresas no mercado de trabalho. Não há absolutamente nenhum problema com crianças disputando o mercado com os adultos.
O estado-babá, a maioridade civil e penal
Depois de tudo isso que lemos agora, vamos ao totalitarismo do estado-babá. [15] Sim, o estado quer regular absolutamente tudo pensando nas crianças achando os pais são incapazes de cuidar do próprios filhos. Em praticamente tudo há controle de idade: bebidas, filmes, jogos (eletrônicos ou não), revistas, livros, pornografia, etc. Não bastasse o estado ainda querer controlar o que as crianças podem ou não comer na escola e com qual tipo de brinquedo elas podem brincar ou não. Em absolutamente tudo o estado acredita que pode cuidar melhor das crianças do que os pais ou qualquer outro tutor. Ele acredita que pode definir uma idade arbitrariamente e julgar melhor do que ninguém onde elas podem estar ou não e acredita piamente de que por causa de uma passagem de dia no seu aniversário todos os indivíduos que supostamente estão sob a sua tutela deixam de ser crianças e passam a ser adultos aptos para votar, dirigir, servir o exército, trabalhar e ainda serem julgados pelos seus atos.
O estado não reconhece em momento algum a guarda dos pais, ele impõe uma lei e diz que ela deve ser seguida, apenas isso. Quem melhor pra cuidar das crianças se não os pais delas? É claro que dúvidas existem e que conselhos são sempre bem-vindos, mas não é o estado que deve dizer como devemos cuidar dos nossos filhos. Não é ele que deve dizer onde os nossos filhos devem nascer, estudar, trabalhar, morar e nem o que eles devem fazer, comer, beber ou o que podem ler, assistir, ouvir ou jogar. Tudo isso deve ser decidido pelos pais.
Portanto, a zeladoria deve ser 100% dos pais ou de quem adotar a criança. É deles a obrigação de proteger a criança, assim como também o direito de abrir mão da sua guarda quando julgar necessário. O estado, ao interferir nisso, prejudica tanto os pais quanto as crianças. Ele não tem legitimidade nenhuma para isso. A sua desculpa de proteger a criança não passa de uma justificativa para controlar de maneira autoritária e ao mesmo tempo doutrinar.
O estado também falha miseravelmente ao definir uma idade de maneira arbitrária para definir quando a criança tem condições de julgar os seus atos ou não. O resultado é visível. Vejamos, quando o estado estabelece uma certa idade para punir um criminoso. Nesse caso ele está privando a vítima de um crime de punir da maneira que ela justa o criminoso. Em suma, ele está legitimando qualquer agressão que o agressor que ainda não atingiu a maioridade penal e o pior, impedindo que suas vítimas o punam mesmo que usando os seus próprios recursos. Nesse caso, para o estado, as vítimas que passam a ser os criminosos e não os agressores, pelo mero capricho de acreditar que uma criança ou qualquer pessoa abaixo de uma determinada idade não sabe o que está fazendo, mesmo que estejamos falando de uma diferença de um dia.
A conclusão, portanto, é clara. Para proteger as nossas crianças devemos tirar o estado de cima delas.
________________________
[1] Murray N. Rothbard; A Ética da Liberdade (São Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 161
[2] Lembrando que em nem momento o Rothbard reconhece a existência do direito à autopropriedade do feto, mas também em nenhum momento defendeu a legitimidade moral do aborto. Rothbard apenas reconhece “direito legítimo da mãe de expulsar o feto (que para ele pode ser um invasor parasitário) de sua autopropriedade”. Para ele os fetos e crianças não são autoproprietários existentes, mas sim autoproprietários em potencial devido a sua incapacidade de usar a sua mente para selecionar os seus fins e ir atrás deles. libd., p. 159
[3] Para Hans-Hermann Hoppe indivíduos com capacidade argumentativa são dotados de direito à autopropriedade, e inclusive é isso que determina se um indivíduo tem direitos ou não. Ele disse:
Na base da teoria natural da propriedade reside a ideia de basear a atribuição de um direito exclusivo de propriedade na existência de um vínculo objetivo, intersubjetivamente determinável, entre o proprietário e a propriedade, e, mutatis mutandis, de identificar como agressivas todas as reivindicações de propriedade que só podem invocar a seu favor uma evidência puramente subjetiva. Enquanto eu posso alegar a meu favor, no que se refere ao meu direito de propriedade sobre o meu corpo, o fato objetivo de que eu fui o primeiro ocupante desse corpo – seu primeiro usuário – qualquer outra pessoa que pretenda ter o direito de controlar esse mesmo corpo nada pode alegar nesse sentido. Ninguém poderia considerar o meu corpo como sendo um produto de sua vontade da mesma forma como eu posso considerá-lo um produto da minha vontade; essa pretensão ao direito de determinar o uso desse recurso escasso que chamo de “meu corpo” seria uma reivindicação de não-usuários, de não-produtores, e estaria baseada exclusivamente na opinião subjetiva, ou seja, numa declaração meramente verbal de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma.
Ver Hans-Hermann Hoppe; Uma teoria do socialismo e capitalismo (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013) p. 26
[4] Rothbard; pp. 45-46
[5] Ver o artigo Debatendo o aborto (Vinícius Dias, 2015) para ler mais sobre o assunto. Link:
[6] Stephen J. Dubnerr, Steven D. Levitt; Freakonomics (Rio de Janeiro, Editora Campus, 2005) pp. 151-153
[7] Ver o link <http://tomwoods.com/podcast/ep-484-liberty-and-the-abortion-controversy/>
[8] Rothbard; 166-167
[9] libd.
[10] Walter Block; Defendendo o Indefensável (São Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 221
[11] Notícia disponível nesse link http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/02/140213_belgica_aprovada_eutanasia_mdb
[12] Rothbard; 163
[13] libd.
[14] libd., 163-164
[15] A colocação aqui foi meramente por impulso mesmo. Na verdade qualquer estado, por definição, é um estado-babá.
Por Luciano Takaki, Austrolibertário puro, agorista, brutalista, antipolítico, conservador moral e absolutista ético.
Primeiramente, vamos entender o que é uma criança: criança nada mais é do que uma pessoa tutelada por adultos e que está em fase pré-púbere. Uma pessoa que não está tutelada não pode ser considerada criança. Quais os direitos dela? Basicamente os mesmos dos adultos. A criança, porém, é tutelada, logo, estará sujeita a zeladoria do tutor. Ela deve ter os seus direitos preservados e os seus tutores têm o dever moral de protegê-los, mas eles também têm o direito de abrir mão da tutela. As razões disso serão mostradas mais tarde. O assunto é impossível de ser abordado sem sofrer ataques de todos os lados, uma vez que ele é espinhoso e os positivistas acreditam piamente que o estado é necessário para proteger as crianças. Seria mesmo? Podemos dizer que não. Para explicar melhor resolvi dividir o artigo em tópicos. Comecemos:
O período pré-natal
Um tema controverso que gera divergência até mesmo entre os libertários: a gravidez pode ser interrompida? Caso a mãe queira expulsar o feto e a expulsão não provocar sua morte, a gravidez pode ser interrompida. A partir do momento que a mãe não quiser o feto mais ali, ela pode expulsá-lo pelo fato de ele já estar sendo coercitivo, mas não pode matá-lo. Em outras palavras, ele pode até passar a ser parasitário, como Rothbard descreveu. [1] Então, vem a pergunta: se o feto pode se tornar coercivo e parasitário, por que não abortar? Em outras palavras, por que a mãe não pode expulsá-lo de sua propriedade?
Antes de mais nada vamos entender que a defesa do Rothbard ao direito da mulher abortar não é exatamente uma defesa ao direito da mulher matar o feto. Rothbard deixa claro que a mulher tem que ter o direito de expulsar o feto e em nenhum momento ele fala em matá-lo ou multilá-lo. Porém, Rothbard não contraria expulsões que resultam na morte do feto. Rothbard com relação ao aborto foi não considera o aborto uma agressão à autopropriedade do feto pelo fato de simplesmente não reconhecê-lo, [2] que mesmo não sendo dotado de capacidade argumentativa ele é um potencial desenvolvedor de tal capacidade. [3] Hans-Hermann Hoppe na introdução de A Ética da Liberdade deixou claro que Rothbard não disse em nenhum momento que o aborto é moralmente aceitável. Numa sociedade libertária uma mulher que aborta pode muito bem ser boicotada pela atitude ou até mesmo expulsa dependendo da rejeição da sociedade. Porém, ele não mostrou oposição à prática, ainda que ele sugira qualquer punição que não seja física. Hoppe escreveu:
O direito de se fazer um aborto não implica que se possa fazer um aborto em qualquer lugar. Na verdade, não há nada que impeça que proprietários privados e associações discriminem e punam aborcionistas por todos os meios que não envolvam punições físicas. Famílias e proprietários são livres para proibir um aborto em seu próprio domínio e podem entrar em um acordo restritivo com outros proprietários com o mesmo propósito. Além disso, todo proprietário e toda associação de proprietários é livre para demitir ou deixar de contratar e se recusar a fazer transações com um aborcionista. Pode realmente vir a ser o caso que local civilizado algum possa ser encontrado e que uma mãe tenha que recorrer ao infame “mercado-negro” para fazer um aborto. Não só não haveria nada errado nesta situação, como seria positivamente moral ao aumentar o custo da conduta sexual irresponsável e ajudar a reduzir o número de abortos. Em contraste, a decisão da Suprema Corte não só foi ilegítima por expandir sua jurisdição estatal central às custas da dos governos estaduais e locais – e ao final das contas, da legítima jurisdição de todo proprietário em relação à sua propriedade – mas também foi também positivamente imoral ao facilitar a acessibilidade e disponibilidade do aborto. [4]
Para os libertários pró-vida o aborto se caracteriza basicamente pelo conflito entre os direitos de autopropriedade da mãe e do feto. O feto de um ser humano, como qualquer indivíduo, possui direitos, afinal, ele dará origem a uma pessoa. A mãe pode expulsar qualquer um de sua propriedade; isso é um direito dela. De fato, isso dá a ela o direito de expulsar o feto do seu corpo. Porém, os eviccionistas acreditam que essa expulsão não pode ocorrer caso ocorra a morte do feto. [5]
Os utilitaristas geralmente para argumentar a favor do aborto usam dados estatísticos para provar a legitimidade dessa prática. Steven D. Levitt, por exemplo, alega que a legalização do aborto nos Estados Unidos reduziu a criminalidade significativamente no país [6] e como um mal menor pode evitar males piores. O problema é que esse tipo de argumento não deve ser o foco numa discussão sobre o assunto. Os fins utilitaristas em discussão sem usar a ética pode levar para qualquer conclusão. Libertários jusnaturalistas — sejam os a favor do aborto, como o Rothbard, ou os que são contra, como o Thomas Woods [7] — vão sempre discutir usando os princípios éticos.
A criação, ou não
O filho nasceu. Podemos dizer que há uma obrigação moral dos pais cuidarem da melhor maneira possível de seus filhos, mas seria ilegítimo como uma obrigação legal. Devemos entender o seguinte: a partir do momento em que os pais têm o seu filho, eles não contam (e nem tem a obrigação de contar porque não possuem poder de premonição) com possíveis casualidades da vida. Existem muitas situações que impossibilitam a zeladoria dos pais, e a pergunta que fica é: ambos os pais abrirem mão da guarda do filho é legítimo? Sim, é legítimo. Caso contrário, não existiriam adoções.
As adoções podem ser feitas entregando ou vendendo os direitos da guarda do filho [8] diretamente pra alguém ou alguma instituição. Muitas pessoas condenam a venda (apesar da entrega ser feita gratuitamente) pelo fato de parecer ter algum fim lucrativo. Sim, há um lucro monetário nessa parte, mas isso serve para compensar a perda da guarda do filho. Muitos ainda afirmam que muitas mulheres teriam filhos indiscriminadamente para vendê-los como se fossem bananas, mas isso o mercado resolveria: ora, se as mulheres fizessem isso – afinal, o corpo é delas, assim como os seus problemas -, o que aconteceria?
A oferta de crianças ficaria muito maior que a demanda, o que resultaria numa queda de preço e isso tiraria qualquer incentivo para as mulheres fazerem isso. Mas vem outra questão: a dos riscos. Os pais poderiam vender a criança para pedófilos ou outras pessoas mal intencionadas. Como se já não existisse o risco, mesmo com o estado ou de os pais entregarem a criança para alguém mal intencionado disposto a driblar a burocracia estatal. Riscos sempre existem desde a hora em que há a fecundação. Os pais não sabem o futuro e nem contam com uma possível situação em que a criação do bebê possa se tornar inviável. No caso dos riscos de vender a criança para uma pessoa mal intencionada, devemos dizer que a burocracia estatal não ajuda a proteger as crianças de abusos, já que condena muitas delas à indigência. Não me refiro apenas ao risco da criança ser entregue a psicopatas, mas o estado, desde o momento em que regula métodos anticoncepcionais até o controle de natalidade, já condena a criança a esses riscos, fora o delas de se tornarem marginais. Portanto, ao justificar uma regulação estatal em cima das adoções ou mesmo a venda da guarda é ignorar também tudo o que o estado atrapalha. Há risco? Há, mas também não justifica o risco de nos submetermos ao estado como se ele realmente salvasse as crianças dele. Ele põe muito mais crianças sob tais riscos com a sua burocracia.
Deve-se lembrar ainda que Rothbard sempre falou em venda dos direitos de guarda da criança, não em venda de criança, ainda que use termo esporadicamente para facilitar a linguagem, mas o correto é a venda dos direitos de guarda. Rothbard disse:
Eles podem entregar o filho para adoção ou podem vender os direitos sobre a criança em um contrato voluntários. Em resumo, temos que nos defrontar com o fato de que a sociedade genuinamente livre terá um próspero livre mercado de crianças. Superficialmente isto parece monstruoso e desumano. Mas uma reflexão mais apurada irá revelar o humanismo superior de tal mercado. Pois temos que constatar que já existe um mercado de crianças hoje, mas, já que o governo proíbe a venda de crianças por um preço, os pais hoje podem apenas doar seus filhos a uma agência de adoção licenciada sem cobrar nada. [9]
A razão de não existir de fato a venda de crianças num mercado voluntário de crianças está no fato das mesmas terem o seu direito à autopropriedade. Elas podem ter as suas guardas vendidas, mas não os seus corpos. Quem compra os direitos de guarda de uma criança passa a cuidar dela, mas não pode cometer nenhum tipo de abuso, uma vez que isso viola a sua autopropriedade, que, como dever moral do tutor, deve ser preservada.
Outra maneira que os pais têm de abrir mão da criação da criança é simplesmente abandonando-a. Sim, largando-a em algum lugar na esperança de que alguém vá resgatá-la e cuidar dela. Tal atitude, por incrível que pareça, tem a sua legitimidade, se ficar claro que é pelo bem da criança. Suponhamos que não há parentes e nem casas de adoções e a mãe não tem como sustentar o bebê devido a algumas casualidades. Ela tem o direito de abandonar o bebê? Obviamente que sim, ela tem o total direito de abandonar o bebê.
Desde que o abandono ocorra em um lugar onde claramente há grande possibilidade de alguém aparecer para ajudar a criança. Ou seja, em um lugar visível. Não me refiro à beira de uma estrada deserta ou num bosque. Abandoná-lo em um lugar não visível implica em matá-lo, pois é a mesma coisa que impossibilitar a criança de ser encontrada ou mesmo impedir que terceiros adotem uma criança cujos pais abriram mão da guarda. Quando não há alternativas e se a manutenção da guarda do bebê não se mostrar viável, não há porque os pais não fazerem isso, já que, mesmo considerando os riscos, praticamente não há diferença em tentar de maneira fustrada cuidar do bebê ou abandoná-lo. Walter Block deixa isso bem claro:
Os pais, ao assumirem o papel da paternidade ou maternidade, constituem uma espécie de “zeladores” da criança. E mesmo se o pai ou mãe deseja abandonar esse papel que ele ou ela adotou voluntariamente ou nem chegar a assumir essa obrigação, ele ou ela são completamente livres para fazê-lo. A mãe pode oferecer o bebê para adoção ou, na velha tradição da lei natural, deixar o bebê nas escadarias de uma igreja ou instituição de caridade especializada em cuidar de crianças. [10]
Claro que estamos sempre lembrando que uma coisa é a moralidade do ato, e outra é a sua legalidade. Dependendo do ato, abandonar uma criança pode ou não ser imoral, mas proibir legalmente o abandono sempre será uma agressão e portanto uma ação antiética, uma vez que ignora todas as possibilidades possíveis.
A eutanásia e a negligência infantil
Em fevereiro de 2014, a Bélgica aprovou a legalização da eutanásia em crianças. [11] Isso quer dizer muitas coisas, e podemos dizer que a legalização implica que todos devem colaborar com o ato dos pais decidirem matar o seu próprio filho se ele for considerado um portador de uma enfermidade terminal. A eutanásia costuma ser aplicada em momentos de pouca razão e muita emoção, ainda mais quando se envolve crianças. No caso de um adulto poderíamos considerar legítimo o suicídio assistido, mas não podemos dizer o mesmo quando se trata de uma criança, já que ela certamente não tem capacidade para julgar a sua situação. Apesar de que sem ou com estado, pais desesperados podem tomar atitudes precipitadas. Mas há como abreviar o sofrimento de uma criança com uma enfermidade irreversível e terminal sem agredi-la? Sim, simplesmente sedá-la e deixar que a morte ocorra naturalmente.
Aplicar uma dose de cianeto de potássio na criança para abreviar o seu sofrimento violaria o princípio da não-agressão. Muitas vezes, a criança sequer está consciente para dizer se quer realmente isso, e sendo os pais os zeladores da criança, cabe a eles decidir o melhor para o filho sem a necessidade de tomar uma ação que implique em acabar com a vida dela. A prática da ortotanásia, então, seria legítima, uma vez que os pais, ao resolverem simplesmente interromper o tratamento para deixar a criança morrer naturalmente não seria uma agressão, já que optaram por uma causa natural que poderia muito bem acontecer sem eles terem culpa nenhuma. Porém, cabe uma observação: os pais não podem impedir ninguém de dar continuidade ao tratamento caso decidam o interromper.
Rothbard disse que os pais têm o direito de deixar o filho morrer de fome, estando deformado (assim, podemos entender que ele pode ter dito que aa criança pode estar doente, em estado vegetativo ou qualquer invalidez irreversível) ou não. [12] A alegação dele gerou muita polêmica no meio libertário, mas vamos analisar o contexto. O próprio autor já explicou que numa sociedade libertária a única obrigação dos pais é não violar o princípio da não-agressão. Para ele, os pais não poderiam aplicar castigos físicos nos filhos, não teriam a obrigação de alimentá-los, educá-los ou vesti-los. Apesar de que ao fazer isso os pais já teriam aberto mão da propriedade da guarda da criança, logo, ninguém deve ser impedido de manter a criança viva ou mesmo criá-la. Walter Block, em seu Defendendo o Indefensável, já contraria Rothbard. Nas últimas páginas do livro, Block disse que os pais não devem deixar o seu filho morrer de fome porque ao terem decidido criá-lo, eles adquiriram um “título de zeladoria”. Portanto, os pais têm a obrigação de, pelo menos, manter a criança viva, o que inclui alimentá-la.
Não alimentar uma criança a ponto de deixá-la morrer constitui necessariamente numa agressão? Não, vamos recapitular as palavras do Rothbard no que certamente é o mais polêmico de sua obra:
Aplicando nossa teoria ao relacionamento entre pais e filhos, o que já foi dito significa que os pais não têm o direito de agredir seus filhos, mas também que os pais não deveriam ter a obrigação legal de alimentar, de vestir ou de educar seus filhos, já que estas obrigações acarretariam em ações positivas compelidas aos pais, privando-os de seus direitos. Os pais, portanto, não podem assassinar ou mutilar seu filho, e a lei adequadamente proíbe um pai de fazer isso. Mas os pais deveriam ter o direito legal de não alimentar o filho, i.e., de deixá-lo morrer. A lei, portanto, não pode compelir justamente os pais a alimentar um filho ou a sustentar sua vida. (Novamente, se os pais têm ou não têm mais propriamente uma obrigação moral ao invés de uma obrigação legalmente executável de manter seu filho vivo é completamente outra questão.) Esta regra nos permite resolver aquelas questões complicadas como: será que os pais deveriam ter o direito de deixar um recém-nascido deformado morrer (e.g., ao não alimentá-lo)?
A resposta é claramente sim, resultando a fortiori do direito mais amplo de permitir que qualquer recém-nascido, deformado ou não, morra. (Não obstante, como iremos ver a seguir, em uma sociedade libertária a existência de um livre mercado de bebês irá fazer com que tal “desprezo” seja mínimo.) [13]
A impressão que muita gente tem com esse trecho é a de que o Rothbard defende um infanticídio. Não é bem assim. Rothbard certamente foi o primeiro libertário a ter coragem de abordar essa questão dentro de uma visão radical. Não tem o menor sentido existir uma obrigação legal que obrigue os pais a alimentarem os seus filhos. No mesmo capítulo, Rothbard explica:
Examinemos as implicações da doutrina de que os pais deveriam ter uma obrigação legalmente executável de manter seus filhos vivos. O argumento a favor desta obrigação contém dois componentes: que os pais criaram o filho através de um ato proposital feito por livre escolha; e que a criança está temporariamente indefesa e não é uma autoproprietária.
Se considerarmos primeiro o argumento do desamparo, então antes temos que considerar a questão geral de que é uma falácia filosófica afirmar que as necessidades de A justamente impõem a B obrigações coercivas de satisfazer estas necessidades. Porque, deste modo, os direitos de B são violados. Segundo, se é possível afirmar que uma criança indefesa impõe obrigações legais a alguém, por que especificamente a seus pais e não a outras pessoas? O que os pais têm a ver com isso? A resposta, obviamente, é que eles são os criadores da criança, porém isto nos leva ao segundo argumento, o argumento da criação.
Então, considerando o argumento da criação, ele imediatamente exclui qualquer obrigação de uma mãe manter vivo um filho que tenha sido resultado de um ato de estupro, já que este não foi um ato livremente empreendido. Ele também exclui qualquer obrigação de um padrasto, madrasta, tutor ou pais adotivos que não participaram de maneira alguma da criação da criança. [14]
Portanto, ninguém deve ter nenhuma obrigação legal para com nenhuma criança, pelo motivo de que os direitos dos pais são violados e que porque se os pais tiverem obrigações legais para com elas, eles teriam de sustentá-las independentemente das suas condições e disponibilidade de recursos. Vejamos, por exemplo, o caso de uma família no interior da Etiópia que não tem condições de alimentar o seu filho ou então pais que para curar o seu filho de rara doença terem que abrir mão de tantos recursos que podem ficar sem ter o que comer. Seria justo, nessas horas roubar outras pessoas para curar o filho desses pais ou alimentar o filho da família etíope? Certamente que não. Imagine se a doença rara citada de repente deixa de ser rara e se torne uma epidemia. Ficaria inviável tratar as crianças usando os recursos alheios, mas a questão ainda não é essa. Roubo sempre será roubo mesmo que seja para tal fim.
Podemos concluir que Rothbard não defende que é moralmente correto pais deixarem o seu filho morrer de fome, mas que não é legítimo que pais que façam isso sejam legalmente punidos, uma vez que devemos analisar todo o contexto da situação. Porém, seria claramente uma agressão se tais pais impedirem a criança de ser alimentada ou impedi-la de buscar novos tutores para que cuidem dela.
A educação e o trabalho
Nenhuma criança deve ser impedida de estudar ou trabalhar, assim como também não pode ser proibida. Apenas os pais, como tutores, podem fazê-lo. O estado comete erro duplo ao proibir a criança de trabalhar e obrigá-la a estudar. As crianças devem ser livres pra optar por uma das duas opções ou mesmo pelas duas ou nenhuma das duas. Impedir a criança de trabalhar leva a diversos problemas, a possibilidade de impedi-la de se tornar um adulto de sucesso, fazê-la se tornar improdutiva ou buscar mais qualificações. Muitos dirão que isso não seria necessário, já que muitos ricos não trabalharam quando crianças. Porém, isso não justifica tal proibição, já que impedir a criança de trabalhar não apenas a impede de ter o sucesso na fase adulta como também pode impedi-las de sair da miséria e ajudar os seus pais, que podem estar impossibilitados de trabalhar. O trabalho infantil nunca foi um mal quando feito voluntariamente. O problema maior é quando elas são obrigadas a fazer isso, seja por parte dos pais como por parte do estado, ainda que o estado tenha feito exatamente o oposto: proibi-las de fazer isso. A criança deve ter sim, o seu direito de obter a sua renda.
Muitos ainda argumentam que o lugar da criança é na escola e não no trabalho. Afinal, quem definiu isso? Por qual motivo a criança deve ser obrigada a estudar numa escola? Não existem bons argumentos que se sustentem quando o assunto é defender a educação compulsória. Ela não apenas impede a criança de optar ser educada em casa usando a sua autodidaxia como ainda impede aquelas que são maltratadas na escola de se livrarem do problema. Fora que é absolutamente nada produtivo insistir em mandar uma criança indisposta estudar. Será um gasto totalmente desnecessário para todos, principalmente para os pais. Quando a criança tem a opção de não frequentar a escola, ela pode simplesmente trabalhar dando mais opções para as empresas no mercado de trabalho. Não há absolutamente nenhum problema com crianças disputando o mercado com os adultos.
O estado-babá, a maioridade civil e penal
Depois de tudo isso que lemos agora, vamos ao totalitarismo do estado-babá. [15] Sim, o estado quer regular absolutamente tudo pensando nas crianças achando os pais são incapazes de cuidar do próprios filhos. Em praticamente tudo há controle de idade: bebidas, filmes, jogos (eletrônicos ou não), revistas, livros, pornografia, etc. Não bastasse o estado ainda querer controlar o que as crianças podem ou não comer na escola e com qual tipo de brinquedo elas podem brincar ou não. Em absolutamente tudo o estado acredita que pode cuidar melhor das crianças do que os pais ou qualquer outro tutor. Ele acredita que pode definir uma idade arbitrariamente e julgar melhor do que ninguém onde elas podem estar ou não e acredita piamente de que por causa de uma passagem de dia no seu aniversário todos os indivíduos que supostamente estão sob a sua tutela deixam de ser crianças e passam a ser adultos aptos para votar, dirigir, servir o exército, trabalhar e ainda serem julgados pelos seus atos.
O estado não reconhece em momento algum a guarda dos pais, ele impõe uma lei e diz que ela deve ser seguida, apenas isso. Quem melhor pra cuidar das crianças se não os pais delas? É claro que dúvidas existem e que conselhos são sempre bem-vindos, mas não é o estado que deve dizer como devemos cuidar dos nossos filhos. Não é ele que deve dizer onde os nossos filhos devem nascer, estudar, trabalhar, morar e nem o que eles devem fazer, comer, beber ou o que podem ler, assistir, ouvir ou jogar. Tudo isso deve ser decidido pelos pais.
Portanto, a zeladoria deve ser 100% dos pais ou de quem adotar a criança. É deles a obrigação de proteger a criança, assim como também o direito de abrir mão da sua guarda quando julgar necessário. O estado, ao interferir nisso, prejudica tanto os pais quanto as crianças. Ele não tem legitimidade nenhuma para isso. A sua desculpa de proteger a criança não passa de uma justificativa para controlar de maneira autoritária e ao mesmo tempo doutrinar.
O estado também falha miseravelmente ao definir uma idade de maneira arbitrária para definir quando a criança tem condições de julgar os seus atos ou não. O resultado é visível. Vejamos, quando o estado estabelece uma certa idade para punir um criminoso. Nesse caso ele está privando a vítima de um crime de punir da maneira que ela justa o criminoso. Em suma, ele está legitimando qualquer agressão que o agressor que ainda não atingiu a maioridade penal e o pior, impedindo que suas vítimas o punam mesmo que usando os seus próprios recursos. Nesse caso, para o estado, as vítimas que passam a ser os criminosos e não os agressores, pelo mero capricho de acreditar que uma criança ou qualquer pessoa abaixo de uma determinada idade não sabe o que está fazendo, mesmo que estejamos falando de uma diferença de um dia.
A conclusão, portanto, é clara. Para proteger as nossas crianças devemos tirar o estado de cima delas.
________________________
[1] Murray N. Rothbard; A Ética da Liberdade (São Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 161
[2] Lembrando que em nem momento o Rothbard reconhece a existência do direito à autopropriedade do feto, mas também em nenhum momento defendeu a legitimidade moral do aborto. Rothbard apenas reconhece “direito legítimo da mãe de expulsar o feto (que para ele pode ser um invasor parasitário) de sua autopropriedade”. Para ele os fetos e crianças não são autoproprietários existentes, mas sim autoproprietários em potencial devido a sua incapacidade de usar a sua mente para selecionar os seus fins e ir atrás deles. libd., p. 159
[3] Para Hans-Hermann Hoppe indivíduos com capacidade argumentativa são dotados de direito à autopropriedade, e inclusive é isso que determina se um indivíduo tem direitos ou não. Ele disse:
Na base da teoria natural da propriedade reside a ideia de basear a atribuição de um direito exclusivo de propriedade na existência de um vínculo objetivo, intersubjetivamente determinável, entre o proprietário e a propriedade, e, mutatis mutandis, de identificar como agressivas todas as reivindicações de propriedade que só podem invocar a seu favor uma evidência puramente subjetiva. Enquanto eu posso alegar a meu favor, no que se refere ao meu direito de propriedade sobre o meu corpo, o fato objetivo de que eu fui o primeiro ocupante desse corpo – seu primeiro usuário – qualquer outra pessoa que pretenda ter o direito de controlar esse mesmo corpo nada pode alegar nesse sentido. Ninguém poderia considerar o meu corpo como sendo um produto de sua vontade da mesma forma como eu posso considerá-lo um produto da minha vontade; essa pretensão ao direito de determinar o uso desse recurso escasso que chamo de “meu corpo” seria uma reivindicação de não-usuários, de não-produtores, e estaria baseada exclusivamente na opinião subjetiva, ou seja, numa declaração meramente verbal de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma.
Ver Hans-Hermann Hoppe; Uma teoria do socialismo e capitalismo (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013) p. 26
[4] Rothbard; pp. 45-46
[5] Ver o artigo Debatendo o aborto (Vinícius Dias, 2015) para ler mais sobre o assunto. Link:
[6] Stephen J. Dubnerr, Steven D. Levitt; Freakonomics (Rio de Janeiro, Editora Campus, 2005) pp. 151-153
[7] Ver o link <http://tomwoods.com/podcast/ep-484-liberty-and-the-abortion-controversy/>
[8] Rothbard; 166-167
[9] libd.
[10] Walter Block; Defendendo o Indefensável (São Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 221
[11] Notícia disponível nesse link http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/02/140213_belgica_aprovada_eutanasia_mdb
[12] Rothbard; 163
[13] libd.
[14] libd., 163-164
[15] A colocação aqui foi meramente por impulso mesmo. Na verdade qualquer estado, por definição, é um estado-babá.
Por Luciano Takaki, Austrolibertário puro, agorista, brutalista, antipolítico, conservador moral e absolutista ético.
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