A entrevista a seguir foi concedida ao períodico Austrian Economics Newsletter, do Mises Institute.
O senhor faz uma espécie de revisionismo histórico ao descrever a Espanha como sendo o local de nascimento da Escola Austríaca de Economia.
Sim, mas é acurado. Concentrar-se somente em Viena é uma postura muito tacanha. Há essa tendência de crer, como todos os modernistas, que somente o novo tem valor e que estudar o velho seria mera arqueologia. Porém, na economia e na filosofia, é exatamente o contrário. A maioria das grandes e boas ideias já havia sido concebida por alguma grande mente no passado, inclusive as mais fundamentais ideias austríacas.
Uma das principais contribuições de Murray Rothbard foi mostrar que a pré-história da Escola Austríaca pode ser encontrada nas obras dos escolásticos espanhóis durante o “Siglo de Oro Español“, que foi desde o reinado de Carlos V no século XVI até o barroco do século XVII.
Nos anos 1950, Friedrich Hayek conheceu o grande intelectual italiano Bruno Leoni, autor de Liberdade e Legislação, e Leoni convenceu Hayek de que as origens intelectuais do liberalismo clássico deveriam ser buscadas na Europa Mediterrânea e não na Escócia. No livro de Leoni, há uma citação de Cícero na qual Cato diz que o direito romano é o conjunto de regras jurídicas mais perfeito de todos porque ele não foi criado por uma só mente. Ele não foi construído do nada. Ele é resultado de um processo para o qual várias mentes contribuíram com sua sabedoria. Advogados e juízes não fazem as leis; eles as descobrem e podem apenas aperfeiçoá-las muito lentamente.
Tenho uma carta de Hayek, datada de 7 de janeiro de 1979, na qual ele diz que os princípios básicos da teoria da concorrência de mercado já haviam sido delineados pelos escolásticos espanhóis do século XVI, e que o liberalismo econômico não havia sido criado pelos calvinistas, mas sim pelos jesuítas espanhóis.
AEN: Quem eram estes predecessores espanhóis da Escola Austríaca?
de Soto: A maioria deles lecionava teologia e ética na Universidade de Salamanca, uma cidade medieval localizada a 240 quilômetros a noroeste de Madri, perto da fronteira com Portugal. Eles eram majoritariamente dominicanos ou jesuítas, e sua visão econômica é extremamente semelhante àquela que viria a ser enfatizada por Carl Menger mais de 300 anos depois.
Um de meus favoritos é Diego de Covarrubias y Leyva, que apresentou a teoria do valor subjetivo. Ele escreveu que “o valor de um bem não depende de sua natureza essencial, mas sim da estimação subjetiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata.” Ele nasceu em 1512, foi bispo de Segovia e foi ministro do rei Filipe II de Espanha. Hoje, no museu do pintor espanhol El Greco, na cidade de Toledo, há uma impressionante imagem pintada dele (foto à esquerda). Carl Menger menciona o tratado sobre depreciação monetária escrito por Covarrubias em 1650.
Outro importante salamanquense foi Luis Saravia de la Calle, o primeiro pensador a demonstrar que são os preços que determinam os custos de produção, e não o contrário. Ele escreveu que “aqueles que mensuram o preço justo pelo trabalho, pelos custos e pelos riscos incorridos pela pessoa que lidam com o mercado estão cometendo um grande erro. O preço justo não é encontrado pela contagem dos custos, mas sim pela estimação comum de todos”. Ele foi também um ardoroso crítico do sistema bancário de reservas fracionárias, argumentando que receber juros era incompatível com a natureza de um depósito à vista (em conta-corrente), e que o correto seria o pagamento de taxas para que o ouro permanecesse armazenado nos bancos.
Os salamanquenses se dispuseram a estudar o sistema bancário porque perceberam a relação corrupta e promíscua entre os bancos e o governo, relação essa que dependia fundamentalmente de uma proteção legal concedida à prática das reservas fracionárias. Os salamanquenses se opunham a todas as formas de inflação. Por exemplo, havia Martín Azpilcueta Navarro. Ele nasceu em 1493, viveu 94 anos, e é especialmente famoso por ter explicado a teoria quantitativa da moeda em seu livro de 1556, Comentario resolutorio de cambios (eu tenho a primeira edição!), escrevendo que “a moeda vale mais onde e quando ela está em falta do que onde e quando ela está em abundância.”
Navarro era contrário à prática de reservas fracionárias e fez uma clara distinção entre a atividade bancária voltada para empréstimos e a atividade bancária voltada para depósitos. O banqueiro, disse ele, deveria ser o “guardião, administrador, fiador” do dinheiro em sua posse. Ele disse que não pode haver um contrato válido entre um depositante e um banqueiro que permita a prática de reservas fracionárias. Se tal contrato fosse feito, ambos os lados seriam culpados de fraude.
Mais favorável à prática de reservas fracionárias era Luis de Molina, que foi o primeiro a argumentar que depósitos bancários deveriam ser considerados como parte da oferta monetária. Porém, ele confundiu depósitos com empréstimos, e não entendeu como as reservas fracionárias são inerentemente desestabilizadoras. Portanto, Navarro e de la Calle foram os antecessores da Escola Monetária Britânica, extremamente receosos de qualquer atividade bancária que mantivesse menos de 100% de reservas para depósitos à vista, ao passo que Molina e Juan de Lugo foram os precursores da Escola Bancária Britânica, mais tolerantes às reservas fracionárias.
AEN: Além das questões bancárias, a posição política dos salamanquenses eram pró-mercado?
de Soto: Eles tendiam a defender posições libertárias de maneira geral. Por exemplo, Francisco de Victoria é amplamente visto como o fundador do direito internacional. Ele reviveu a ideia de que o direito natural é moralmente superior ao poder do estado. Depois, Juan de Mariana condenou toda e qualquer desvalorização da moeda como sendo uma completa e absoluta usurpação, e sugeriu que qualquer cidadão poderia assassinar um governante que impusesse tributos sem o consentimento das pessoas. O único quesito em que Mariana errou foi em sua condenação das touradas, mas como sou neto de um famoso toureiro, não sou imparcial.
AEN: O elo espanhol-austríaco vai além de um mero acidente histórico?
de Soto: Lembre-se de que, no século XVI, o Imperador Carlos V, Rei da Espanha— também conhecido como Carlos de Habsburgo — enviou seu irmão Fernando I para ser o Rei da “Áustria”, palavra que etimologicamente significa “Parte Oriental do Império”, ou Österreich. Esse reino abrangia a maior parte do continente europeu. A única exceção era a França, então uma ilha isolada e cercada por forças espanholas.
As relações econômicas, políticas e culturais entre a Áustria e a Espanha continuaram por vários séculos. Carl Menger redescobriu e abraçou essa tradição continental católica do pensamento escolástico espanhol, que na época já estava quase que completamente esquecida.
AEN: Bem, então o que aconteceu com essa tradição, dado que ela teve de ser redescoberta?
de Soto: Adam Smith e seus seguidores vieram a dominar o pensamento econômico espanhol, pondo fim ao desenvolvimento da escola subjetivista, a qual não apenas defendia o livre mercado de forma consistente, como também dominava toda a sua teoria. A tradição foi mantida viva na França com os escritos de Richard Cantillon, A.J. Turgot e Jean-Baptiste Say, e algum conhecimento conseguiu penetrar a Inglaterra por meio dos escritos de teóricos protestantes do direito natural, como Samuel Pufendorf e Hugo Grócio. Porém, na Espanha, vivenciamos os anos de decadência dos séculos XVIII e XIX, com o fim dos Habsburgos e início dos Bourbons da França.
O estatismo de Filipe IV de Espanha o levou a tentar organizar um vasto império centralizado em Madri, um projeto inerentemente inviável. Os escolásticos foram contra esse estatismo, é claro, mas foram sumariamente desconsiderados e sua tradição foi perdida. Havia também o problema de que eles escreviam em latim, o que gerou uma barreira linguística. Adicionalmente, os britânicos criaram e difundiram a Lenda Negra, que durante os dois séculos seguintes denegriu tudo o que era católico e espanhol. Ironicamente, a Reforma Protestante na realidade atrasou a causa da economia de livre mercado. A Igreja há muito tempo vinha desempenhando o papel vital de contrabalançar o poder do estado. Com o declínio da Igreja em decorrência da Reforma, a sabedoria de seus mais brilhantes teóricos econômicos foi perdida, e o poder do estado e a influência de seus apologistas cresceram.
AEN: Por que foi necessário um austríaco para redescobrir a tradição econômica espanhola?
de Soto: Os livros dos escolásticos foram publicados em Bruxelas e na Itália, e foram enviados à Espanha e a Viena. Foi assim, portanto, que chegaram à Áustria. Havia também uma tradição de pensamento escolástico na Áustria, a qual, afinal, é 90% católica.
No entanto, foi um escritor católico espanhol quem solucionou o “paradoxo do valor”, 27 anos antes de Carl Menger. Seu nome era Jaime Balmes. Ele nasceu na Catalunha em 1810 e morreu em 1848. Durante sua curta vida, ele se tornou o mais importante filósofo tomista da Espanha. Em 1844, ele publicou um artigo chamado “A Verdadeira Ideia do Valor; ou Pensamentos Sobre a Origem, a Natureza e a Variedade dos Preços”.
Balmes perguntava por que uma pedra preciosa valia mais que um pedaço de pão? E ele próprio respondeu que o valor de um bem está em sua utilidade, de modo que “há uma necessária relação entre a escassez ou abundância de um bem e o aumento ou a redução de seu valor.”
AEN: Falemos sobre questões um pouco mais atuais. O senhor produziu um plano para reformar o sistema previdenciário espanhol.
de Soto: Essa questão de pensões garantidas para todos os idosos é um problema premente em todos os países ocidentais, mas que só será sentido daqui a algumas décadas, quando então não haverá mais solução. Em todos os países, as obrigações assumidas pela Previdência são enormes, mas a demografia se encarregou de fazer com que elas se tornassem essencialmente impagáveis, a menos que os impostos sejam elevados a níveis intoleráveis. Antes de saber o que deve ser feito com estes sistemas, é necessário entender suas inerentes contradições.
Primeiro, os sistemas previdenciários alegam ser esquemas de poupança de dinheiro, mas a realidade é que elesdesestimulam a poupança. Além de as “contribuições compulsórias” incidirem justamente sobre o que seria a poupança dos indivíduos, a previdência leva as pessoas a crerem que elas não precisam ser precavidas quanto ao futuro, pois o estado cuidará delas. Consequentemente, as pessoas passam a crer que é desnecessário poupar. É empiricamente comprovável que a expansão da seguridade social coincidiu com um enorme declínio na poupança das pessoas. Claro. Poupança é sacrifício. Por que poupar se meu futuro “está garantido pelo estado”? Esta queda na poupança tende a elevar os juros e a consequentemente reduzir os níveis de investimento de várias maneiras impossíveis de ser mensuradas.
Segundo, não importa o que a lei diz sobre como empregados e empregadores compartilham o fardo da contribuição previdenciária. Do ponto de vista econômico, o trabalhador paga todo o imposto. Mises foi o primeiro a desenvolver esta constatação em seu livro Socialism, no qual ele disse que contribuições para a seguridade social sempre se dão em detrimento dos salários.
Terceiro, o sistema é baseado em uma generalizada e indiscriminada agressão institucional contra os cidadãos. Logo, trata-se de um ataque direto à liberdade. E isso, por sua vez, inibe o desenvolvimento criativo da descoberta empreendedorial. Novas modalidades financeiras de poupança e o uso eficiente da propriedade são tolhidos. A resultante malversação de capital e mão-de-obra é incalculavelmente alta.
Quarto, o sistema não pode funcionar como seguro e assistencialismo ao mesmo tempo, porque ambos os conceitos são incompatíveis. Um seguro é baseado no princípio de que os benefícios se dão de acordo com as contribuições. Já o assistencialismo é baseado na necessidade. Se os retornos passam a ser declinantes, que é o que ocorrerá, o elemento “seguridade” do sistema passa a abortar o elemento “assistencialista”. E vice-versa.
E por que nós temos esses sistemas? Porque burocratas acreditam que algumas pessoas supostamente não são capazes de cuidar de si próprias. Mas isso é o mesmo que dizer que, dado que um pequeno número de pessoas não consegue se alimentar, todos os indivíduos de uma população devem ser forçados a comer em cantinas estatais.
O segredo para qualquer reforma previdenciária é que cada indivíduo deve ser o responsável por sua poupança. O indivíduo não pode ser forçado a participar de um programa compulsório. Aqueles que querem sair do sistema previdenciário devem ter a liberdade para fazê-lo. Não pagarão contribuições e também não ganharão nenhum benefício estatal. Esse deve ser o objetivo de longo prazo, e é de se esperar que a maioria das pessoas faria essa opção. No meu plano, nosso período de transição permite uma redução de 50% na taxa de contribuição atual em troca de se abrir mão de todas as reivindicações futuras. Adicionalmente, nenhum imposto jamais deve ser aumentado para pagar por esse período de transição. O sistema previdenciário já está falido e é urgente tratar desse assunto; adiar a solução irá apenas intensificar a tragédia quando esta inevitavelmente chegar.
AEN: A educação estatal pode ser benéfica? Há vantagens em se ter um sistema de ensino comandado pelo estado?
de Soto: O estado opera à margem do mercado, sem jamais ser guiado pelo sistema de lucros e prejuízos. E quando você não leva em conta o sistema de lucros e prejuízos, é absolutamente impossível saber se o seu trabalho está sendo bem feito.
Quando a educação é financiada e controlada pelo estado, você tende a criar — para utilizar um linguajar econômico — um ‘investimento errôneo’ ou um ‘investimento intelectual mal feito’. A teoria do “capital humano”, do economista Gary Becker, insinua que quanto mais se investe em educação e quanto mais a criança aprende na escola, mais valorosa ela se torna para a sociedade. A conclusão óbvia é que o governo deveria pagar pela escolarização e educação de todos para tornar a sociedade mais rica.
Discordo totalmente de Becker. Como o dinheiro envolvido é o dinheiro de impostos, não há como calcular em termos econômicos se a educação feita desta forma é um bom investimento ou não. Muito provavelmente não é. As pessoas gastam anos estudando coisas que não terão utilidade nenhuma para elas. Isso é um inacreditável desperdício de talento e de recursos. Mas é exatamente isso o que ocorre quando se dá ao governo o controle das coisas, principalmente do currículo escolar.
A teoria neoclássica costuma tratar o capital em termos generalistas. Nela, não há um investimento bom e um investimento ruim de capital; é tudo apenas capital e tudo é homogêneo. Ocorre que, em vários casos, um investimento errôneo em capital intelectual pode acabar trazendo consequências muito mais nefastas para a sociedade do que uma simples malversação de recursos escassos que foram investidos erroneamente em um projeto que se revelou insustentável.
AEN: O senhor vê alguma contradição no meio liberal entre ideias teóricas radicais e propostas modestas de reforma?
de Soto: O maior perigo para a estratégia libertária é cair na armadilha do pragmatismo político. É fácil se esquecer dos objetivos supremos em decorrência da suposta impossibilidade política de se alcançá-los no curto prazo. Consequentemente, nossos programas e objetivos se tornam obscuros e nossos intelectuais são cooptados pelo governo.
A maneira correta de impedir que isso aconteça é adotando uma estratégia dupla. Por um lado, temos de ser abertos e honestos a respeito dos nossos objetivos, e temos de nos esforçar para educar o público, explicando por que nosso objetivo final é o melhor para a sociedade. Por outro, devemos apoiar toda e qualquer política de curto prazo que nos leve para mais perto dos nossos objetivos. Desta forma, quando nossos objetivos de curto prazo forem alcançados, não haverá como retroceder. Poderemos seguir adiante com a total convicção de que as pessoas compreenderão que é necessário continuar fazendo sempre mais.
AEN: O senhor conheceu a Escola Austríaca aos 16 anos descobrindo acidentalmente em uma biblioteca o livro Ação Humana, de Ludwig von Mises. Parece surpreendente que a ciência econômica já fosse tão intensamente atraente para o senhor em uma idade tão prematura.
de Soto: Minha família é do ramo do seguro de vida, que aliás é o único traço em comum que tenho com John Maynard Keynes, que, na década de 1930, foi o presidente da National Mutual Life Assurance Society de Londres. O ramo do seguro de vida é um negócio bastante tradicional, tendo evoluído ao longo de 200 anos sem praticamente nenhuma intervenção estatal. Trabalhando com meu pai, tornei-me naturalmente interessado em teoria monetária, finanças e instituições econômicas. Queria ser um atuário. Eu era muito bom em matemática.
Porém, ainda jovem comecei a me dar conta de que aquilo que funciona para as ciências atuariais, que lida com probabilidades de vida e morte, não pode funcionar na ciência econômica, porque não há constantes na ação humana. Há criatividade, mudanças, escolhas e descobertas, mas não há parâmetros fixos que permitam a criação de funções matemáticas.
Curvas de oferta e demanda não podem refletir a realidade porque as informações necessárias para construí-las só podem ser obtidas ao longo do tempo por meio do processo empreendedorial. Essas informações jamais aparecem ao mesmo tempo, como a matemática requer que pressuponhamos.
AEN: Keynes aparentemente não chegou a essas mesmas lições a respeito da ação humana ao trabalhar no ramo de seguros.
de Soto: O problema é que Keynes não corrompeu apenas a ciência econômica. Ele corrompeu também as práticas do ramo atuarial. Ele rompeu com as políticas tradicionais de sua empresa e começou a valorar seus ativos ao seu valor atual de mercado em vez de utilizar o conservador método do valor histórico. Quando você avalia ativos de acordo com seu valor atual de mercado, o valor deles fica ao sabor dos ciclos econômicos. Se a economia estiver vivenciando uma fase de crescimento em decorrência da expansão artificial do crédito, seus ativos passam a valer mais. Consequentemente, você passa a fazer investimentos mais ousados e errôneos. Quando vem a recessão, o valor de seus ativos volta a cair, mas seus passivos permanecem inalterados ou podem até mesmo subir. Resultado: você reduziu o capital de sua empresa, podendo até mesmo tê-la levado à falência.
Quando Keynes começou a fazer isso, ele imediatamente ganhou uma enorme vantagem competitiva sobre seus concorrentes. Ele passou a poder distribuir dividendos para seus clientes sem que houvesse obtido nenhum ganho de capital. Enquanto a bolsa de valores estava subindo, tudo era uma maravilha. Porém, quando a Grande Depressão chegou, sua empresa quase foi à falência por causa desta sua inovação.
A atual crise imobiliária e financeira decorre diretamente dessa corrupção nos métodos de contabilidade das empresas e dos bancos.
AEN: O senhor deu ao Mises Institute uma foto do Rei Juan Carlos segurando um livro de Mises. Ele é um misesiano?
de Soto: Não diria isso, mas ele gosta do livre mercado e entende que temos opiniões radicais a respeito. Todos os anos, nós o convidamos para uma feira que comemora o lançamento de novos livros liberais, e ele é gentil o bastante para comparecer. Dado que ele não estudou na Universidade de Chicago, ele é mais pró-austríaco do que seria de se esperar. Nunca se sabe quais indivíduos ou grupos serão atraídos pela Escola Austríaca.
AEN: Por exemplo, a influência dos austríacos por meio dos salamanquenses sobre a moderna Igreja Católica.
de Soto: A Igreja Católica é como um enorme transatlântico. Se você vira o timão para a direita, a embarcação começa a se mover muito lentamente, mas chega uma hora em que ela finalmente começa a mudar de direção.
Há um poderoso grupo católico na Espanha chamado Opus Dei. Eles são muito próximos do Papa e são extremamente pró-mercado. Alguém dentro da ordem leu as obras de Hayek, viu que ele era extremamente pró-mercado e enviou a mensagem para toda a organização: o Opus Dei tem de apoiar os austríacos.
Repentinamente, todos os meus livros estavam sendo lidos por todos os membros da ordem, e eu comecei a ministrar palestras para seus prelados e numerários. Recentemente, li uma tese de Ph.D sobre Mises e Hayek escrita por um membro proeminente do Opus Dei.
As opiniões da Igreja sobre questões econômicas devem ser ouvidas, mas não impactam em questões relativas à fé. A propósito, na parede do meu escritório, tenho uma bela foto de Hayek com João Paulo II.
AEN: O senhor acha que economistas deveriam levar a religião mais a sério do que costumam levar?
de Soto: Sem dúvida. A religião tem um papel importante na vida de uma economia. A religião transmite de geração para geração certos padrões de comportamento e de tradições morais que são essenciais para que haja respeito às normas, separação dos poderes e respeito aos direitos naturais de cada indivíduo. Sem isso, uma sólida economia de mercado é impossível. Se os contratos deixam de ser respeitados, a sociedade se desintegra. A religião, e não o estado, é o meio essencial de se transmitir às pessoas um senso de obrigações morais, como a de que devemos manter nossas promessas e respeitar a propriedade de terceiros.
AEN: Algum economista já foi declarado santo?
de Soto: Dois escolásticos. São Bernardino de Siena e seu grande pupilo, Santo Antonino de Florença. Rezemos para que não sejam os últimos.
Não deixe de ler os espetaculares artigos de Jesús Huerta de Soto aqui.
Sobre o Autor: Jesús Huerta de Soto
Jesús Huerta de Soto professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor de A Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial, Socialismo, cálculo econômico e função empresarial e da monumental obra Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos.
O senhor faz uma espécie de revisionismo histórico ao descrever a Espanha como sendo o local de nascimento da Escola Austríaca de Economia.
Sim, mas é acurado. Concentrar-se somente em Viena é uma postura muito tacanha. Há essa tendência de crer, como todos os modernistas, que somente o novo tem valor e que estudar o velho seria mera arqueologia. Porém, na economia e na filosofia, é exatamente o contrário. A maioria das grandes e boas ideias já havia sido concebida por alguma grande mente no passado, inclusive as mais fundamentais ideias austríacas.
Uma das principais contribuições de Murray Rothbard foi mostrar que a pré-história da Escola Austríaca pode ser encontrada nas obras dos escolásticos espanhóis durante o “Siglo de Oro Español“, que foi desde o reinado de Carlos V no século XVI até o barroco do século XVII.
Nos anos 1950, Friedrich Hayek conheceu o grande intelectual italiano Bruno Leoni, autor de Liberdade e Legislação, e Leoni convenceu Hayek de que as origens intelectuais do liberalismo clássico deveriam ser buscadas na Europa Mediterrânea e não na Escócia. No livro de Leoni, há uma citação de Cícero na qual Cato diz que o direito romano é o conjunto de regras jurídicas mais perfeito de todos porque ele não foi criado por uma só mente. Ele não foi construído do nada. Ele é resultado de um processo para o qual várias mentes contribuíram com sua sabedoria. Advogados e juízes não fazem as leis; eles as descobrem e podem apenas aperfeiçoá-las muito lentamente.
Tenho uma carta de Hayek, datada de 7 de janeiro de 1979, na qual ele diz que os princípios básicos da teoria da concorrência de mercado já haviam sido delineados pelos escolásticos espanhóis do século XVI, e que o liberalismo econômico não havia sido criado pelos calvinistas, mas sim pelos jesuítas espanhóis.
AEN: Quem eram estes predecessores espanhóis da Escola Austríaca?
de Soto: A maioria deles lecionava teologia e ética na Universidade de Salamanca, uma cidade medieval localizada a 240 quilômetros a noroeste de Madri, perto da fronteira com Portugal. Eles eram majoritariamente dominicanos ou jesuítas, e sua visão econômica é extremamente semelhante àquela que viria a ser enfatizada por Carl Menger mais de 300 anos depois.
Um de meus favoritos é Diego de Covarrubias y Leyva, que apresentou a teoria do valor subjetivo. Ele escreveu que “o valor de um bem não depende de sua natureza essencial, mas sim da estimação subjetiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata.” Ele nasceu em 1512, foi bispo de Segovia e foi ministro do rei Filipe II de Espanha. Hoje, no museu do pintor espanhol El Greco, na cidade de Toledo, há uma impressionante imagem pintada dele (foto à esquerda). Carl Menger menciona o tratado sobre depreciação monetária escrito por Covarrubias em 1650.
Outro importante salamanquense foi Luis Saravia de la Calle, o primeiro pensador a demonstrar que são os preços que determinam os custos de produção, e não o contrário. Ele escreveu que “aqueles que mensuram o preço justo pelo trabalho, pelos custos e pelos riscos incorridos pela pessoa que lidam com o mercado estão cometendo um grande erro. O preço justo não é encontrado pela contagem dos custos, mas sim pela estimação comum de todos”. Ele foi também um ardoroso crítico do sistema bancário de reservas fracionárias, argumentando que receber juros era incompatível com a natureza de um depósito à vista (em conta-corrente), e que o correto seria o pagamento de taxas para que o ouro permanecesse armazenado nos bancos.
Os salamanquenses se dispuseram a estudar o sistema bancário porque perceberam a relação corrupta e promíscua entre os bancos e o governo, relação essa que dependia fundamentalmente de uma proteção legal concedida à prática das reservas fracionárias. Os salamanquenses se opunham a todas as formas de inflação. Por exemplo, havia Martín Azpilcueta Navarro. Ele nasceu em 1493, viveu 94 anos, e é especialmente famoso por ter explicado a teoria quantitativa da moeda em seu livro de 1556, Comentario resolutorio de cambios (eu tenho a primeira edição!), escrevendo que “a moeda vale mais onde e quando ela está em falta do que onde e quando ela está em abundância.”
Navarro era contrário à prática de reservas fracionárias e fez uma clara distinção entre a atividade bancária voltada para empréstimos e a atividade bancária voltada para depósitos. O banqueiro, disse ele, deveria ser o “guardião, administrador, fiador” do dinheiro em sua posse. Ele disse que não pode haver um contrato válido entre um depositante e um banqueiro que permita a prática de reservas fracionárias. Se tal contrato fosse feito, ambos os lados seriam culpados de fraude.
Mais favorável à prática de reservas fracionárias era Luis de Molina, que foi o primeiro a argumentar que depósitos bancários deveriam ser considerados como parte da oferta monetária. Porém, ele confundiu depósitos com empréstimos, e não entendeu como as reservas fracionárias são inerentemente desestabilizadoras. Portanto, Navarro e de la Calle foram os antecessores da Escola Monetária Britânica, extremamente receosos de qualquer atividade bancária que mantivesse menos de 100% de reservas para depósitos à vista, ao passo que Molina e Juan de Lugo foram os precursores da Escola Bancária Britânica, mais tolerantes às reservas fracionárias.
AEN: Além das questões bancárias, a posição política dos salamanquenses eram pró-mercado?
de Soto: Eles tendiam a defender posições libertárias de maneira geral. Por exemplo, Francisco de Victoria é amplamente visto como o fundador do direito internacional. Ele reviveu a ideia de que o direito natural é moralmente superior ao poder do estado. Depois, Juan de Mariana condenou toda e qualquer desvalorização da moeda como sendo uma completa e absoluta usurpação, e sugeriu que qualquer cidadão poderia assassinar um governante que impusesse tributos sem o consentimento das pessoas. O único quesito em que Mariana errou foi em sua condenação das touradas, mas como sou neto de um famoso toureiro, não sou imparcial.
AEN: O elo espanhol-austríaco vai além de um mero acidente histórico?
de Soto: Lembre-se de que, no século XVI, o Imperador Carlos V, Rei da Espanha— também conhecido como Carlos de Habsburgo — enviou seu irmão Fernando I para ser o Rei da “Áustria”, palavra que etimologicamente significa “Parte Oriental do Império”, ou Österreich. Esse reino abrangia a maior parte do continente europeu. A única exceção era a França, então uma ilha isolada e cercada por forças espanholas.
As relações econômicas, políticas e culturais entre a Áustria e a Espanha continuaram por vários séculos. Carl Menger redescobriu e abraçou essa tradição continental católica do pensamento escolástico espanhol, que na época já estava quase que completamente esquecida.
AEN: Bem, então o que aconteceu com essa tradição, dado que ela teve de ser redescoberta?
de Soto: Adam Smith e seus seguidores vieram a dominar o pensamento econômico espanhol, pondo fim ao desenvolvimento da escola subjetivista, a qual não apenas defendia o livre mercado de forma consistente, como também dominava toda a sua teoria. A tradição foi mantida viva na França com os escritos de Richard Cantillon, A.J. Turgot e Jean-Baptiste Say, e algum conhecimento conseguiu penetrar a Inglaterra por meio dos escritos de teóricos protestantes do direito natural, como Samuel Pufendorf e Hugo Grócio. Porém, na Espanha, vivenciamos os anos de decadência dos séculos XVIII e XIX, com o fim dos Habsburgos e início dos Bourbons da França.
O estatismo de Filipe IV de Espanha o levou a tentar organizar um vasto império centralizado em Madri, um projeto inerentemente inviável. Os escolásticos foram contra esse estatismo, é claro, mas foram sumariamente desconsiderados e sua tradição foi perdida. Havia também o problema de que eles escreviam em latim, o que gerou uma barreira linguística. Adicionalmente, os britânicos criaram e difundiram a Lenda Negra, que durante os dois séculos seguintes denegriu tudo o que era católico e espanhol. Ironicamente, a Reforma Protestante na realidade atrasou a causa da economia de livre mercado. A Igreja há muito tempo vinha desempenhando o papel vital de contrabalançar o poder do estado. Com o declínio da Igreja em decorrência da Reforma, a sabedoria de seus mais brilhantes teóricos econômicos foi perdida, e o poder do estado e a influência de seus apologistas cresceram.
AEN: Por que foi necessário um austríaco para redescobrir a tradição econômica espanhola?
de Soto: Os livros dos escolásticos foram publicados em Bruxelas e na Itália, e foram enviados à Espanha e a Viena. Foi assim, portanto, que chegaram à Áustria. Havia também uma tradição de pensamento escolástico na Áustria, a qual, afinal, é 90% católica.
No entanto, foi um escritor católico espanhol quem solucionou o “paradoxo do valor”, 27 anos antes de Carl Menger. Seu nome era Jaime Balmes. Ele nasceu na Catalunha em 1810 e morreu em 1848. Durante sua curta vida, ele se tornou o mais importante filósofo tomista da Espanha. Em 1844, ele publicou um artigo chamado “A Verdadeira Ideia do Valor; ou Pensamentos Sobre a Origem, a Natureza e a Variedade dos Preços”.
Balmes perguntava por que uma pedra preciosa valia mais que um pedaço de pão? E ele próprio respondeu que o valor de um bem está em sua utilidade, de modo que “há uma necessária relação entre a escassez ou abundância de um bem e o aumento ou a redução de seu valor.”
AEN: Falemos sobre questões um pouco mais atuais. O senhor produziu um plano para reformar o sistema previdenciário espanhol.
de Soto: Essa questão de pensões garantidas para todos os idosos é um problema premente em todos os países ocidentais, mas que só será sentido daqui a algumas décadas, quando então não haverá mais solução. Em todos os países, as obrigações assumidas pela Previdência são enormes, mas a demografia se encarregou de fazer com que elas se tornassem essencialmente impagáveis, a menos que os impostos sejam elevados a níveis intoleráveis. Antes de saber o que deve ser feito com estes sistemas, é necessário entender suas inerentes contradições.
Primeiro, os sistemas previdenciários alegam ser esquemas de poupança de dinheiro, mas a realidade é que elesdesestimulam a poupança. Além de as “contribuições compulsórias” incidirem justamente sobre o que seria a poupança dos indivíduos, a previdência leva as pessoas a crerem que elas não precisam ser precavidas quanto ao futuro, pois o estado cuidará delas. Consequentemente, as pessoas passam a crer que é desnecessário poupar. É empiricamente comprovável que a expansão da seguridade social coincidiu com um enorme declínio na poupança das pessoas. Claro. Poupança é sacrifício. Por que poupar se meu futuro “está garantido pelo estado”? Esta queda na poupança tende a elevar os juros e a consequentemente reduzir os níveis de investimento de várias maneiras impossíveis de ser mensuradas.
Segundo, não importa o que a lei diz sobre como empregados e empregadores compartilham o fardo da contribuição previdenciária. Do ponto de vista econômico, o trabalhador paga todo o imposto. Mises foi o primeiro a desenvolver esta constatação em seu livro Socialism, no qual ele disse que contribuições para a seguridade social sempre se dão em detrimento dos salários.
Terceiro, o sistema é baseado em uma generalizada e indiscriminada agressão institucional contra os cidadãos. Logo, trata-se de um ataque direto à liberdade. E isso, por sua vez, inibe o desenvolvimento criativo da descoberta empreendedorial. Novas modalidades financeiras de poupança e o uso eficiente da propriedade são tolhidos. A resultante malversação de capital e mão-de-obra é incalculavelmente alta.
Quarto, o sistema não pode funcionar como seguro e assistencialismo ao mesmo tempo, porque ambos os conceitos são incompatíveis. Um seguro é baseado no princípio de que os benefícios se dão de acordo com as contribuições. Já o assistencialismo é baseado na necessidade. Se os retornos passam a ser declinantes, que é o que ocorrerá, o elemento “seguridade” do sistema passa a abortar o elemento “assistencialista”. E vice-versa.
E por que nós temos esses sistemas? Porque burocratas acreditam que algumas pessoas supostamente não são capazes de cuidar de si próprias. Mas isso é o mesmo que dizer que, dado que um pequeno número de pessoas não consegue se alimentar, todos os indivíduos de uma população devem ser forçados a comer em cantinas estatais.
O segredo para qualquer reforma previdenciária é que cada indivíduo deve ser o responsável por sua poupança. O indivíduo não pode ser forçado a participar de um programa compulsório. Aqueles que querem sair do sistema previdenciário devem ter a liberdade para fazê-lo. Não pagarão contribuições e também não ganharão nenhum benefício estatal. Esse deve ser o objetivo de longo prazo, e é de se esperar que a maioria das pessoas faria essa opção. No meu plano, nosso período de transição permite uma redução de 50% na taxa de contribuição atual em troca de se abrir mão de todas as reivindicações futuras. Adicionalmente, nenhum imposto jamais deve ser aumentado para pagar por esse período de transição. O sistema previdenciário já está falido e é urgente tratar desse assunto; adiar a solução irá apenas intensificar a tragédia quando esta inevitavelmente chegar.
AEN: A educação estatal pode ser benéfica? Há vantagens em se ter um sistema de ensino comandado pelo estado?
de Soto: O estado opera à margem do mercado, sem jamais ser guiado pelo sistema de lucros e prejuízos. E quando você não leva em conta o sistema de lucros e prejuízos, é absolutamente impossível saber se o seu trabalho está sendo bem feito.
Quando a educação é financiada e controlada pelo estado, você tende a criar — para utilizar um linguajar econômico — um ‘investimento errôneo’ ou um ‘investimento intelectual mal feito’. A teoria do “capital humano”, do economista Gary Becker, insinua que quanto mais se investe em educação e quanto mais a criança aprende na escola, mais valorosa ela se torna para a sociedade. A conclusão óbvia é que o governo deveria pagar pela escolarização e educação de todos para tornar a sociedade mais rica.
Discordo totalmente de Becker. Como o dinheiro envolvido é o dinheiro de impostos, não há como calcular em termos econômicos se a educação feita desta forma é um bom investimento ou não. Muito provavelmente não é. As pessoas gastam anos estudando coisas que não terão utilidade nenhuma para elas. Isso é um inacreditável desperdício de talento e de recursos. Mas é exatamente isso o que ocorre quando se dá ao governo o controle das coisas, principalmente do currículo escolar.
A teoria neoclássica costuma tratar o capital em termos generalistas. Nela, não há um investimento bom e um investimento ruim de capital; é tudo apenas capital e tudo é homogêneo. Ocorre que, em vários casos, um investimento errôneo em capital intelectual pode acabar trazendo consequências muito mais nefastas para a sociedade do que uma simples malversação de recursos escassos que foram investidos erroneamente em um projeto que se revelou insustentável.
AEN: O senhor vê alguma contradição no meio liberal entre ideias teóricas radicais e propostas modestas de reforma?
de Soto: O maior perigo para a estratégia libertária é cair na armadilha do pragmatismo político. É fácil se esquecer dos objetivos supremos em decorrência da suposta impossibilidade política de se alcançá-los no curto prazo. Consequentemente, nossos programas e objetivos se tornam obscuros e nossos intelectuais são cooptados pelo governo.
A maneira correta de impedir que isso aconteça é adotando uma estratégia dupla. Por um lado, temos de ser abertos e honestos a respeito dos nossos objetivos, e temos de nos esforçar para educar o público, explicando por que nosso objetivo final é o melhor para a sociedade. Por outro, devemos apoiar toda e qualquer política de curto prazo que nos leve para mais perto dos nossos objetivos. Desta forma, quando nossos objetivos de curto prazo forem alcançados, não haverá como retroceder. Poderemos seguir adiante com a total convicção de que as pessoas compreenderão que é necessário continuar fazendo sempre mais.
AEN: O senhor conheceu a Escola Austríaca aos 16 anos descobrindo acidentalmente em uma biblioteca o livro Ação Humana, de Ludwig von Mises. Parece surpreendente que a ciência econômica já fosse tão intensamente atraente para o senhor em uma idade tão prematura.
de Soto: Minha família é do ramo do seguro de vida, que aliás é o único traço em comum que tenho com John Maynard Keynes, que, na década de 1930, foi o presidente da National Mutual Life Assurance Society de Londres. O ramo do seguro de vida é um negócio bastante tradicional, tendo evoluído ao longo de 200 anos sem praticamente nenhuma intervenção estatal. Trabalhando com meu pai, tornei-me naturalmente interessado em teoria monetária, finanças e instituições econômicas. Queria ser um atuário. Eu era muito bom em matemática.
Porém, ainda jovem comecei a me dar conta de que aquilo que funciona para as ciências atuariais, que lida com probabilidades de vida e morte, não pode funcionar na ciência econômica, porque não há constantes na ação humana. Há criatividade, mudanças, escolhas e descobertas, mas não há parâmetros fixos que permitam a criação de funções matemáticas.
Curvas de oferta e demanda não podem refletir a realidade porque as informações necessárias para construí-las só podem ser obtidas ao longo do tempo por meio do processo empreendedorial. Essas informações jamais aparecem ao mesmo tempo, como a matemática requer que pressuponhamos.
AEN: Keynes aparentemente não chegou a essas mesmas lições a respeito da ação humana ao trabalhar no ramo de seguros.
de Soto: O problema é que Keynes não corrompeu apenas a ciência econômica. Ele corrompeu também as práticas do ramo atuarial. Ele rompeu com as políticas tradicionais de sua empresa e começou a valorar seus ativos ao seu valor atual de mercado em vez de utilizar o conservador método do valor histórico. Quando você avalia ativos de acordo com seu valor atual de mercado, o valor deles fica ao sabor dos ciclos econômicos. Se a economia estiver vivenciando uma fase de crescimento em decorrência da expansão artificial do crédito, seus ativos passam a valer mais. Consequentemente, você passa a fazer investimentos mais ousados e errôneos. Quando vem a recessão, o valor de seus ativos volta a cair, mas seus passivos permanecem inalterados ou podem até mesmo subir. Resultado: você reduziu o capital de sua empresa, podendo até mesmo tê-la levado à falência.
Quando Keynes começou a fazer isso, ele imediatamente ganhou uma enorme vantagem competitiva sobre seus concorrentes. Ele passou a poder distribuir dividendos para seus clientes sem que houvesse obtido nenhum ganho de capital. Enquanto a bolsa de valores estava subindo, tudo era uma maravilha. Porém, quando a Grande Depressão chegou, sua empresa quase foi à falência por causa desta sua inovação.
A atual crise imobiliária e financeira decorre diretamente dessa corrupção nos métodos de contabilidade das empresas e dos bancos.
AEN: O senhor deu ao Mises Institute uma foto do Rei Juan Carlos segurando um livro de Mises. Ele é um misesiano?
de Soto: Não diria isso, mas ele gosta do livre mercado e entende que temos opiniões radicais a respeito. Todos os anos, nós o convidamos para uma feira que comemora o lançamento de novos livros liberais, e ele é gentil o bastante para comparecer. Dado que ele não estudou na Universidade de Chicago, ele é mais pró-austríaco do que seria de se esperar. Nunca se sabe quais indivíduos ou grupos serão atraídos pela Escola Austríaca.
AEN: Por exemplo, a influência dos austríacos por meio dos salamanquenses sobre a moderna Igreja Católica.
de Soto: A Igreja Católica é como um enorme transatlântico. Se você vira o timão para a direita, a embarcação começa a se mover muito lentamente, mas chega uma hora em que ela finalmente começa a mudar de direção.
Há um poderoso grupo católico na Espanha chamado Opus Dei. Eles são muito próximos do Papa e são extremamente pró-mercado. Alguém dentro da ordem leu as obras de Hayek, viu que ele era extremamente pró-mercado e enviou a mensagem para toda a organização: o Opus Dei tem de apoiar os austríacos.
Repentinamente, todos os meus livros estavam sendo lidos por todos os membros da ordem, e eu comecei a ministrar palestras para seus prelados e numerários. Recentemente, li uma tese de Ph.D sobre Mises e Hayek escrita por um membro proeminente do Opus Dei.
As opiniões da Igreja sobre questões econômicas devem ser ouvidas, mas não impactam em questões relativas à fé. A propósito, na parede do meu escritório, tenho uma bela foto de Hayek com João Paulo II.
AEN: O senhor acha que economistas deveriam levar a religião mais a sério do que costumam levar?
de Soto: Sem dúvida. A religião tem um papel importante na vida de uma economia. A religião transmite de geração para geração certos padrões de comportamento e de tradições morais que são essenciais para que haja respeito às normas, separação dos poderes e respeito aos direitos naturais de cada indivíduo. Sem isso, uma sólida economia de mercado é impossível. Se os contratos deixam de ser respeitados, a sociedade se desintegra. A religião, e não o estado, é o meio essencial de se transmitir às pessoas um senso de obrigações morais, como a de que devemos manter nossas promessas e respeitar a propriedade de terceiros.
AEN: Algum economista já foi declarado santo?
de Soto: Dois escolásticos. São Bernardino de Siena e seu grande pupilo, Santo Antonino de Florença. Rezemos para que não sejam os últimos.
Não deixe de ler os espetaculares artigos de Jesús Huerta de Soto aqui.
Sobre o Autor: Jesús Huerta de Soto
Jesús Huerta de Soto professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor de A Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial, Socialismo, cálculo econômico e função empresarial e da monumental obra Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos.
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