Mercado negro – alguns esclarecimentos
Quando confrontado com um esboço de como uma sociedade
verdadeiramente voluntária poderia funcionar, com empresas privadas ofertando
serviços judiciais e de defesa, junto com educação e Big Macs, o crítico
frequentemente contesta: “Tal arranjo nunca duraria no mundo real! O crime organizado inevitavelmente iria
assumir o comando, tornando-se o novo governo!”
Trata-se de uma argumentação típica que, na realidade, está
invertendo as coisas. Contrariamente à
crença popular, o governo não obstrui o surgimento do crime organizado; ele
fomenta.
Pare por um momento e pense naqueles setores da economia
tipicamente ocupados pelo crime organizado: prostituição, jogos, agiotagem,
narcóticos e sindicatos.
O que todos
esses setores têm em comum?
Simples. Ou eles são fortemente
regulados pelo estado, ou são pura e simplesmente proibidos por ele. Em contraste, nos setores que estão
relativamente livres da interferência governamental, o crime organizado não se
estabelece.
A experiência clássica que comprova a validade dessa
explicação é a Lei Seca que vigorou nos EUA no período 1919-1933. Durante essa época, a produção, o transporte
e a venda de bebidas alcoólicas eram ilegais.
O que aconteceu? Gangsteres como
Al Capone entraram em cena e passaram a controlar o comércio ilegal,
aniquilando seus concorrentes nas inevitáveis e infindáveis disputas
territoriais. Entretanto, assim que a
Lei Seca foi revogada (em uma das poucas coisas decentes que Franklin Roosevelt
fez em toda a sua presidência), o crime organizado abandonou a indústria do
álcool e se voltou para os outros setores que continuavam proibidos.
Agora, se a análise acima está correta, e o crime organizado
(e gangues violentas em geral) prospera apenas naquelas áreas infestadas de
intervenção estatal, então parece óbvio que uma anarquia de mercado iria
emascular esses grupos criminosos.
Colocando em outras palavras, à medida que o governo legalizasse mais e
mais setores, o crime organizado teria de concentrar suas atividades em
negócios cada vez mais restritos.
No
limite, se tudo fosse legalizado (do ponto de vista de legislação estatal), o
crime organizado não teria como obter nenhuma vantagem especial. Da mesma forma que a máfia não aguenta
concorrer diretamente com uma fabricante de cervejas como a Budweiser, ela
também perderia sua fatia de mercado para empreendedores honestos dos setores
judiciário e policial caso o estado cancelasse seu monopólio sobre esses
serviços.
Uma
Explicação Rival para o Episódio da Lei Seca
Alguns críticos mais sagazes apresentaram uma interpretação
rival para a minha teoria acima. Eles
argumentam que eu errei ao interpretar a revogação da Lei Seca como sendo uma
redução da intervenção estatal na indústria de bebidas alcoólicas. Segundo eles, o que ocorreu foi o oposto: ao
revogar a Lei Seca, o estado na verdaderetomou sua função de protetor da
propriedade, protegendo dessa forma os produtores de álcool.
Devo confessar que essa explicação alternativa me pegou de
surpresa; pensava que meu exemplo da Lei Seca acima era incontestável, mas meus
críticos ao menos ofereceram uma réplica plausível. Entretanto, no cômputo geral, ainda creio que
minha interpretação é bem superior.
Esse, todavia, é um ponto crucial; sendo assim, permita-me elaborá-lo
melhor.
Quando digo que o crime organizado se beneficiou com a Lei
Seca, é porque a polícia efetivamente perseguia e afugentava os legítimos
empresários da indústria de bebidas alcoólicas.
Se o estado literalmente declarasse que Al Capone tinha o monopólio da
distribuição de bebidas em Chicago, e mandasse qualquer concorrente pra cadeia,
então o preço das bebidas em Chicago iria disparar, e Capone obteria lucros
exorbitantes em decorrência disso. Isso
é algo óbvio. De maneira similar, estou
argumentando que, quando o estado ameaça colocar na cadeia todos os
distribuidores de bebidas – mas faz vista grossa para Capone, que paga suas
propinas em dia -, isso é economicamente similar a um monopólio garantido pelo
estado.
Estou utilizando Capone apenas para fazer um argumento
ilustrativo. Não fiz nenhuma pesquisa
específica sobre ele, mas é certo que hoje em dia as grandes organizações
criminosas pagam regularmente sua propina à polícia – cujo termo técnico é
“taxa de proteção”. Se o leitor duvida
disso, então é porque ele de fato não entende o essencial do comércio de
drogas. Para uma introdução básica,
assista a Serpico, um ótimo filme com Al Pacino baseado na história verídica de
um policial do departamento de narcóticos da polícia de Nova York que se recusava
a aceitar dinheiro sujo. (Pensando bem,
você pode assistir a praticamente qualquer filme de Al Pacino para aprender que
os grandes barões do tráfico rotineiramente subornam a polícia).
Os Custos e
Benefícios Marginais da Violência nos Mercados
Empiricamente, já deveria estar mais do que óbvio que a
violência anda de mãos dadas com os mercados que sofrem de ampla proibição
estatal. Novamente, o experimento
clássico é a Lei Seca. Seria
inconcebível imaginar os executivos da Budweiser ordenando um massacre –
naquele estilo em que carros passam metralhando a fachada de um estabelecimento
– dos seus rivais da Heineken.
Entretanto, quando o estado erradicou grande parte dos produtores dessa
indústria, os massacres se tornaram comuns.
Essa constatação ajuda a entender algo maior: as disputas territoriais
de gangues rivais que ocorrem atualmente nas grandes cidades são decorrência da
proibição das drogas. Essas disputas não
ocorrem, como pensam alguns, porque o comércio de cocaína seja algo intrinsecamente
“louco” ou “insensato”.
Mas ainda que a maioria dos libertários reconheça a
associação entre violência e proibição estatal, suas causas raramente são
explicadas. Bem resumidamente, a
explicação é simples: a proibição estatal a qualquer tipo de comércio eleva os
benefícios marginais e diminui os custos marginais de se utilizar de violência
contra os concorrentes do setor econômico em questão.
Comecemos com os custos, que são mais fáceis de
entender.
Nesse exato momento, se você
se tornar um distribuidor de cocaína, você estará infringindo leis que podem
mandar-lhe para a cadeia por um bom período de tempo. Entretanto, se você for poderoso o
suficiente, você pode dar sacos e mais sacos de dinheiro para a polícia
local. Dessa forma, na margem, o custo
de você matar um traficante rival é bem menor do que seria se você gerisse um
restaurante tailandês e matasse seu concorrente japonês.
Por quê?
Quando você é um dono de restaurante qualquer, o pior que o
governo pode fazer com você é auditar sua declaração de renda. Porém, se você for um traficante de cocaína e
descuidar da propina, isso pode lhe custar a simpatia dos policiais. Resultado: você pode ir em cana. Assim sendo, se você é um traficante e tiver
condições de pagar religiosamente a propina da polícia, matar alguém deixa de
ser uma medida temerária.
Por outro
lado, se você for um dono de restaurante, ordenar a morte do sujeito que está
abrindo uma casa de sushi na sua rua seria algo insano. O traficante tem tiras corruptos na sua folha
de pagamento, os quais presumivelmente estariam dispostos a fazer vista grossa
a um homicídio caso recebessem uma grana extra.
Além disso, é bem provável que o traficante também tenha conexões ainda
mais importantes, não sendo desarrazoado imaginar que ele possa também subornar
juízes caso algum dia ele tenha de ir a julgamento.
Já os benefícios marginais da violência são muito maiores
para o traficante de cocaína do que para o dono do restaurante tailandês. Traficantes de drogas não são (completamente)
imprudentes; eles operam pelo dinheiro.
Para compensar o alto risco, os retornos monetários do comércio de
cocaína têm de ser astronômicos. (Se
você gosta de gráficos, quando o governo ameaça prender os vendedores de
cocaína, a curva da oferta se desloca acentuadamente para a esquerda, ao passo
que a curva da demanda também se desloca para esquerda, só que muito
pouco. Assim, o preço de equilíbrio do
quilo da cocaína dispara, indo para um nível muito acima do seu custo monetário
de produção).
Por causa das considerações acima, o benefício de se ganhar uma
fatia de mercado no comércio de cocaína é enorme. Cada novo cliente pode significar um lucro
extra de milhares de dólares por mês. Em
enorme contraste, se o dono do restaurante tailandês “roubar” um cliente do
restaurante japonês, isso pode gerar-lhe um acréscimo de meros $100 por mês,
pois a margem de lucro na indústria de restaurantes é muito menor que no
tráfico de drogas. Para os traficantes,
pode fazer sentido ficar rondando portas de escola, vendendo seus produtos para
adolescentes, ou até mesmo dando amostras grátis para novatos (embora eu não
saiba se isso de fato ocorre; estou baseando-me nas propagandas
antidrogas).
Por outro lado, você nunca
vê representantes da Kellogg’s vendendo caixas avulsas de Sucrilhos para as
crianças. Por causa dessa enorme
diferença, conquistar novos clientes é algo muito mais valioso para quem opera
nas indústrias proibidas do que para quem opera no setor livre. É por isso que matar um rival – e com isso
ganhar acesso a seus clientes – é muito mais lucrativo nos setores proibidos.
Portanto, quando o estado ameaça prender os produtores de um
determinado bem, ele acaba alterando os incentivos de mercado, de modo que a
violência passa a ser muito mais lucrativa para essa indústria.
Naturalmente, no mundo real, as pessoas não são computadores
que calculam robotizadamente suas funções de utilidade – ao contrário do que
pensam os economistas neoclássicos.
Assim, não estou dizendo que o mesmo empreendedor vai agir de maneiras
distintas, dependendo da política de combate às drogas. Não estou dizendo que esse empreendedor irá
escolher entre ser um homem reto ou um assassino perverso, tudo dependendo
apenas do nível de repreensão ao tráfico.
Não.
O que ocorre é que aquelas
pessoas que têm predisposição para ser assassinas cruéis ganham um incentivo
adicional com a política de ilegalidade de certos mercados, o que permite que
elas prosperem e se tornem muito ricas em uma sociedade cujas leis antidrogas
são rigorosas.
Logo, ao invés de ser apenas mais um sociopata – do tipo que
mata um sujeito que olhou lascivamente para sua namorada num bar e que, por
isso, vai para a cadeia -, as asininas leis antidrogas acabam por fazer com que
esse sociopata possa ganhar milhões por ano vendendo cocaína – sendo que com
esse dinheiro ele agora poderá comprar armas automáticas, contratar capangas,
subornar policiais e se tornar o rei das ruas.
O Estado
Realmente Protege a Propriedade Privada?
O que é realmente irônico na teoria apresentada pelos meus
críticos é que ela assume que o governo é de fato bom em proteger os direitos
de propriedade. Em outras palavras, a
teoria deles assume que o pessoal honesto da Budweiser não conseguiria competir
com Al Capone em 1930 porque este ameaçaria matá-los – e o pessoal da Bud não
poderia reclamar com a polícia porque, afinal de contas, esse era um mercado
ilegal.
Porém, tão logo a Lei Seca fosse
revogada, eles alegam que os produtores legítimos de bebidas alcoólicas
poderiam repentinamente processar os gangsteres que destruíram seus estoques e
mataram seus empregados.
Concedo que possa haver um grão de verdade nesse raciocínio,
mas enfatizo que é apenas um grão.
Sabemos que o governo tem um desempenho horrível em todos os
empreendimentos que executa, sejam eles educação, pavimentação de estradas,
fornecimento de eletricidade e serviços de inteligência. Considerando-se esse histórico, deveríamos
acreditar que o governo é realmente bom em proteger as pessoas contra
criminosos? Se isso é verdade, então por
que as pessoas cada vez mais recorrem aos tribunais de arbitramento
privados?
Não é óbvio que os tribunais e
a polícia estatais são tão ineficientes e contraproducentes quanto todas as
outras atividades que o estado se arvora fazer?
Para realmente testarmos as diferentes teorias, precisamos
pensar em uma atividade em que o governo (a) não crie empecilhos para os
produtores, mas que também (b) não defenda os direitos de propriedade desses
mesmos produtores. Se essas áreas forem
repletas de roubo e violência, então meus críticos estão certos.
Mas se esses setores forem geralmente
ordeiros e pacíficos, então sou eu quem está certo.
Posso pensar em alguns exemplos em que eu estou certo. Por exemplo, o comércio pela internet é bem
pouco regulado. Claro, se você comprou
um livro de uma pessoa através da Amazon, e o cara não lhe enviou o produto,
você pode levá-lo a um tribunal de pequenas causas. Mas não é isso o que faz o sistema
funcionar.
O sistema funciona porque se
baseia claramente nos efeitos que uma boa reputação traz para um vendedor, e
não porque haja uma ameaça de ações judiciais governamentais.
Outros exemplos são o do Velho Oeste (que estava longe de
ser selvagem), onde os exploradores da Califórnia respeitavam as reivindicações
daqueles que haviam se estabelecido antes, ainda que não houvesse
(inicialmente) nenhum governo formal estabelecendo os direitos de
propriedade. E o professor Ed Stringham
já fez um grande trabalho (veja seus artigos de 2002 e 2003) explicando como
que mercados financeiros razoavelmente sofisticados operaram durante o século
XVII, mesmo sem qualquer imposição de lei estatal.
Também posso contar uma experiência pessoal. Após ter me formado com um semestre de
antecedência na Hillsdale, fiquei uns sete meses sem muito o que fazer, só
esperando começar o meu mestrado na NYU.
Assim, eu e mais dois amigos alugamos um apartamento em uma área muito
decrépita na zona oeste de Chicago. Uma
certa manhã, fui até a rua e vi que a janela da minha caminhonete havia sido
quebrada e meu toca CD, roubado.
Aí
voltei para meu apartamento e chamei a polícia; eles disseram que iriam mandar
uma viatura. (Tive de alertar um de meus colegas para que ele escondesse o
baseado). Mas adivinhe só? Os tiras nunca apareceram. E atrevo-me a dizer que nenhum detetive
perdeu o sono trabalhando até altas horas, investigando o roubo do meu toca CD.
Portanto, creio que, nessa vizinhança, a polícia não se
preocupava muito em proteger os direitos de propriedade dos residentes. E embora eu não possa provar, estou certo de
que o crime organizado não controlava todas as mercearias da região. Agora, pode ser que organizações criminosas
estivessem envolvidas com bares, mas, de novo, adivinhe só? É preciso ter uma
licença estatal para gerir um bar apto a vender bebidas alcoólicas.
E quando se tratava de algo amplamente aberto
para a concorrência, como uma mercearia ou um restaurante, tenho certeza de que
estes eram geridos por empresários legítimos, que não recorriam à violência
para manter possíveis concorrentes afastados.
E eu não creio que a polícia iria se incomodar em proteger esses
comerciantes do assédio de alguma máfia local.
Conclusão
O defensor da anarquia de mercado está fazendo a simples
alegação de que a violação sistemática dos direitos de propriedade não ajuda em
nada uma sociedade. A teoria econômica
padrão diz que os monopólios mantidos à base da violência (ou por sua ameaça)
levam a serviços de baixa qualidade e preços altos.
Essa análise se mantém válida mesmo quando o
monopólio se refere aos serviços judiciais, policiais e militares.
Os libertários geralmente reconhecem que o
governo faz um péssimo trabalho quando tenta educar crianças, manter estradas e
gerir hospitais. Por que, então, alguém
em sã consciência iria querer dar a políticos e burocratas a tarefa de nos
proteger de ladrões e assassinos?
Afinal,
eles são os piores ladrões e assassinos do mundo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário