[O título original]
Onde fica
a fronteira entre a violência ‘simbólica’ e a violência ‘real’?
“Muitos dos jovens que estão usando essa estratégia da violência nas manifestações vieram das periferias brasileiras. Eles já são vítimas da violência cotidiana por parte do Estado e por isso os protestos violentos passam a fazer sentido para eles.” Rafael Alcadipani Silveira, autor do diagnóstico que equivale a uma celebração do vandalismo, não é um músico punk, mas um docente da FGV-SP. O seu (preconceituoso) raciocínio associa “violência” a “periferia” — como se esse sujeito abstrato (a “periferia”) fosse portador de uma substância inescapável (a “violência”).
Por meio
do conhecido expediente de atribuir a um sujeito abstrato (a “periferia”) as
ideias, as vontades e os impulsos dele mesmo, Silveira oculta os sujeitos
concretos que produzem um “sentido” para “protestos violentos”. Tais sujeitos
nada têm a ver com a “periferia”: são acadêmicos-ativistas engajados na
reativação de um projeto político que arruinou as vidas de uma geração de
jovens na Alemanha e na Itália.
No DNA
humano estão inscritas as “pegadas” da evolução dos seres vivos. Nas obras de
arte, encontram-se os sinais de uma extensa cadeia de influências que as
interligam à história da arte. Similarmente, pode-se identificar nos textos
políticos uma genealogia doutrinária, que se manifesta em modelos
argumentativos típicos e expressões estereotipadas.
O professor da FGV menciona a “violência
cotidiana por parte do Estado”. Nas páginas eletrônicas dos Black Blocs, pipoca
a expressão “Estado policial”. Bruno Torturra, o Mídia Ninja ligado a Marina
Silva, definiu os Black Blocs como “uma estética” e defendeu a “ação direta”,
desde que “dirigida aos bancos”. Pablo Ortellado, filósofo e ativista, elogiou
a “ação simbólica” de destruição de uma agência bancária que, interpretada “na
interface da política com a arte”, simularia a ruína do capitalismo. Eu já li
essas coisas — e sei onde.
Tudo isso
foi escrito na década de 1970, pelos intelectuais italianos que lideraram os
grupos autonomistas Potere Operaio, Lotta Continua e Autonomia Operaia. Eles
mencionavam as qualidades exemplares da “ação direta” e a eficiência da
“violência simbólica”. Toni Negri pregava a violência como ferramenta para
defender os “espaços” criados pelas “ações de massa” e exaltava o “efeito terrível
que qualquer comportamento subversivo, mesmo se isolado, causa sobre o
sistema”.
Avançando
um largo passo, Franco Piperno clamava pela “combinação” da “potência
geométrica da Via Fani” (referência ao sequestro de Aldo Moro pelas Brigadas
Vermelhas, em Roma, no 16 de março de 1978) “com a maravilhosa beleza do 12 de
março” (alusão ao assassinato de um policial, em Turim, pelo grupo extremista
Prima Linea, em 1977).
Depois do
assassinato de Moro, Negri e Piperno foram processados e injustamente condenados
a cumprir sentenças de prisão, que acabaram sendo revertidas. Intelectuais, de
modo geral, não sujam as próprias mãos. Os líderes autonomistas não integravam
as Brigadas Vermelhas ou a Prima Linea — e, portanto, não deram as ordens que
resultaram em atos de terror. Eles apenas ensinaram a seus jovens seguidores,
alguns dos quais viriam a militar nas organizações terroristas, que a violência
é necessária, eficaz e bela. A responsabilidade deles não era criminal, mas
política e moral, algo que jamais tiveram a decência de reconhecer.
Onde fica
a fronteira entre a violência “simbólica” e a violência “real”? Na noite de 2
de abril de 1968 bombas incendiárias caseiras explodiram em duas lojas de
departamentos de Frankfurt, que já estavam fechadas. A ação pioneira do grupo
Baader-Meinhof, inscrita “na interface da política com a arte”, foi
cuidadosamente planejada para não matar ninguém. Era a violência “só contra
coisas”, não “contra pessoas”, na frase de Ortellado para justificar as ações
dos Black Blocs.
O primeiro
cadáver do Baader-Meinhof, um guarda penitenciário, surgiu na operação de
resgate de Andreas Baader, em maio de 1970. Depois, vieram outros cadáveres, de
chefes de polícia, juízes, promotores ou empresários. Tais personalidade seriam
“símbolos” do “sistema” — isto é, segundo uma interpretação possível, “coisas”,
não “pessoas”.
A
tragédia alemã precedeu a tragédia italiana, mas não a evitou. No “Outono
Alemão” de 1977, um jovem radical desiludido escreveu uma carta amarga,
irônica, indagando sobre os critérios para decidir quem tinha mais
responsabilidade pela opressão capitalista — e, portanto, deveria ser
selecionado como alvo. “Por que essa política de personalidades? Não poderíamos
sequestrar junto uma cozinheira?
Não
deveríamos pôr um foco maior nas cozinheiras?” Os nossos alegres teóricos dos
Black Blocs aplaudem o incêndio “simbólico” de uma agência bancária, mas ainda
não se pronunciaram sobre o valor artístico da vandalização de edifícios
empresariais, shopping-centers, delegacias, palácios de governo ou residências.
Por que esse “foco” nos bancos?
Eugênio
Bucci — ele também! — usou a palavrinha “estética” quando escreveu sobre a
suposta novidade do “esporte radical e teatral de jogar coquetel molotov contra
os escudos da tropa fardada”. Não existe, porém, novidade. Ortellado publicou
um artigo sobre as fontes da “tática” dos Black Blocs, evidenciando suas
conexões com os movimentos autonomistas de “ação direta” na Alemanha e Itália
dos anos 1970 e 1980, cujos destacamentos de choque servem de modelo aos nossos
encapuzados.
Ele não
diz com clareza, mas as teses políticas que reativam o culto da manifestação
violenta originam-se precisamente de alguns dos acadêmicos-ativistas daquele
tempo, hoje repaginados como mestres grisalhos do movimento antiglobalização.
Os Black
Blocs anunciam um “badernaço nacional” para o 7 de setembro. Mas o “badernaço”
intelectual começou antes, na forma dessas piscadelas cúmplices para idiotas
vestidos de preto que rebobinam um desastroso filme antigo.
Demétrio
Magnoli é sociólogo
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você acha que este texto é tendencioso, visite esta página e veja o convite.
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