“Tudo se torna visualizado. Mas, neste caso, o que vai acontecer com as coisas que não são visíveis, que constituem de fato a maior parte da realidade?”
Giovanni Sartori, Homo Videns (Edusc, 2001)
Em meados da década de 80, o filólogo Antônio Houaiss, idealizador do festejado Dicionário Houaiss e tradutor do Ulisses de James Joyce, liderou uma proposta de reformulação ortográfica do português. Ele queria internacionalizar — por decreto — a língua portuguesa e, para tanto, propunha a retirada de todos seus acentos, espelhando-se no antigo domínio do latim e na presente hegemonia do inglês, línguas em que a sintaxe é quem determina a fonética. Um dos argumentos basilares da proposta de Houaiss era o fato de que os computadores não admitiam acentos e, caso teimasse em permanecer com os seus, a língua portuguesa seria expurgada da história, condenando-se a ser um dialeto na periferia da civilização. Na época, os Fernandos Collor e Henrique ainda não tinham iniciado a abertura de mercado e o Brasil só conhecia computador pessoal por ouvir dizer — o que sabia deles é que tinham como língua-mãe o inglês e não admitiam agudos, circunflexos ou qualquer outro sinal lingüístico que não fossem vogais e consoantes.
Em qualquer país com um pouco mais de respeito pela própria história, um ancião como Houaiss (na época com mais de 70 anos) seria o primeiro a insurgir-se contra o computador, escrevendo libelos em defesa do vernáculo e distribuindo bengaladas em quem ousasse contestá-lo. Entretanto, como é comum no Brasil, Houaiss preferiu fazer o decrépito papel do velho moderno — aquele que não cobra a reverência que a juventude lhe deve e se curva na mesura ao novo para fingir-se atual. O resultado é que o socialista Houaiss impediu a verdadeira dialética social, aquela que se faz da síntese entre a rebeldia imberbe e a reprimenda experiente. Mas Houaiss não estava sozinho em seu erro. Cortejar a juventude é a doença das pessoas de mais idade no Brasil. Aqui, o Maio de 68 tornou-se uma espécie de segunda alma de toda gente. E a escola, que deveria contrapor-se a essa barbárie (porque juventude nunca significou outra coisa em qualquer tempo), é a primeira a estimulá-la, como se vê nos livros didáticos, nas diretrizes do MEC e em eventos como o Pensar XXI, feira realizada anualmente pelo jornal O Popular e que encerrou sua segunda edição na semana passada.
Em todos esses escritos e encontros impera a monomania de que a educação do século XXI deve sujeitar alunos e professores à égide do “aprender a aprender”. Ora, os pedagogos que repetem essa falácia, fingindo-se humildes, revelam, ao enunciá-la, um delírio maior que o do professor Rubião, o novo rico de Machado, em seus espasmos napoleônicos. O que faz o ser humano, a partir mesmo de quando nasce, senão aprender a aprender? Toda a civilização se deve a essa capacidade inata do homem de não apenas aprender o dado, mas de reconstruir o aprendido. E uma escola que se arvora a ensiná-lo a fazer isso, como se ele já não o soubesse, não é mais escola de homens e, sim, oficina de deuses. Uma criança de cinco a sete anos só não “aprendeu a aprender” se porventura tiver um déficit cognitivo irremediável, o que a colocaria na escala dos alunos especiais. E, obviamente, o homem é capaz de transformar a natureza, mas dentro dos limites que ela própria estabelece. Na verdade, uma certa pedagogia edificada na ignorância é que ainda não aprendeu que o homem pode até ter criado Deus, mas é incapaz de substituí-lo.
Escola Escravizada — A primeira conseqüência nefasta dessa falaciosa “educação do século XXI” é a escravização da escola às novas tecnologias, especialmente a televisão. (O próprio culto ao computador não passa de um corolário dessa deificação da tevê.) É, sem dúvida, desejável que a educação se aproprie de todos os meios tecnológicos criados pelo homem. Se até as religiões, que tendem a ser apegadas à tradição, não relutam em incorporar os meios tecnológicos em seus cultos, por que a educação seria refratária a eles? Na medida do possível, a escola tem que ir propiciando aos alunos o conhecimento das novas tecnologias da informação e comunicação. Entretanto, assim como os atributos divinos que a Igreja Católica reconhece em Deus não podem mudar apenas porque o padre Marcelo Rossi transformou as missas em concertos de rock, também os valores intrinsecamente educacionais não podem ser modificados para se adaptarem à tecnologia. Da mesma forma que Houaiss deveria ter lutado para que os computadores se adequassem ao português (como de fato ocorreu), também a escola deve lutar para que a tecnologia se adapte a ela — e a respeite.
A função da escola não é andar na vanguarda da sociedade, mas na sua retaguarda. Quem quiser educar para o futuro deve voltar-se — definitivamente — para o passado. Se até o gato escaldado da água quente pauta-se numa memória instintiva para ter medo da fria, como se pode querer que o homem abdique da experiência (para inspirar-se) e dos fatos (para corrigir-se)? Todavia, é o que pretendem as pedagogias contemporâneas. Elas repudiam a razão e a memória para instaurarem em seu lugar a falsa experiência dos sentidos. Daí uma outra falácia muito em moda — a de que educação é pesquisa. Trata-se de um modismo, cujos efeitos já não se limitam ao ensino superior e se estendem à base da educação. Não se pode confundir instituto de pesquisa com escola primária. Há muito de falácia na idéia de se “educar pela pesquisa”, tão propalada entre educadores a partir do livro homônimo de Pedro Demo e à revelia das nobres intenções de seu autor, que não renega o conhecimento historicamente acumulado em nome de se experimentar por experimentar.
A função primordial da escola — já enfatizavam os essencialistas dos anos 30, como Mortimer Smith — é uma preparação para a vida, não uma imitação canhestra dela. Se a escola não educar o aluno para a disciplina mental (que exige trabalho árduo e não recreação), que outra instância social irá fazê-lo em lugar dela? E a disciplina mental, obviamente, não nasceu com a tecnologia desse século. Ela remonta à filosofia clássica, datada de mais de 2 mil anos. Esfalfar-se atrás de toda nova tecnologia que surge no mercado é olvidar esse passado do qual a escola deve ser herdeira e transmissora. E aqui se recupera outro conceito estigmatizado — o da herança genética e social. Boa parte da constituição biopsicológica do ser humano, a começar de seus genes, é transmitida à revelia do indivíduo; portanto, o professor não pode querer construir tudo junto com o aluno, a partir do nada, recusando-se a ser também um transmissor de conhecimento. Isso é acreditar-se habitante de um mundo que não existe.
Soma de Ignorâncias — A escola contemporânea não se interessa pelo passado da humanidade. Quando finge interessar-se por ele é apenas para subjugá-lo aos interesses imediatos do aluno. O jovem tornou-se medida de todas as coisas, inclusive na escola, onde a pedagogia contemporânea, inspirada em Vygotsky, acredita que o conhecimento emana do coletivo, como se a soma de ignorâncias pudesse dar em conhecimento e não em mais ignorância. É verdade que a escola é para a criança um outro que lhe causa estranhamento e sua inserção nela raramente se dá pelo conhecimento em si, mas pela convivência com os demais alunos. Obviamente essa convivência é desejável, mas a função principal da escola não é fortalecer o espírito gregário do aluno (muitas outras instâncias sociais já fazem isso) e, sim, inseri-lo no mundo do conhecimento historicamente construído (exclusividade da educação formal). Para isso só há um caminho — o da razão, que continua sendo interior ao ser humano, por mais que queiram socializá-la. Pensar verdadeiramente exige uma solidão interior que a algaravia construtivista e pós-construtivista dos neopedagogos vem destruindo sistematicamente.
Transformar o conhecimento historicamente construído num autoconhecimento existencialmente transformador é a função de toda educação que se proponha autêntica — não a partir do decantado Piaget, mas desde o esquecido Sócrates. Caberia à escola fazer com que o aluno se sentisse em casa entre os luminares da ciência, das artes, da cultura, mas isso raramente ocorre, vez que o conhecimento apresentado pelo ensino formal é quase sempre dissociado da realidade autêntica (aquela que transcende espaços e tempos). Além disso, é um saber excessivamente enciclopédico e fragmenta-se em disciplinas estanques, o que o torna árido e aparentemente inútil para a vida.
Para contrapor-se a isso, construtivistas e afins referendam a tese de que a criança é sujeito de seu próprio conhecimento. Dessa premissa correta, retiram uma conclusão torta — a de que essa criança-sujeito, exatamente por ser sujeito, pode ser construída de fora pela neopedagogia. Infelizmente, quase toda a literatura pedagógica que se lê hoje em dia parte dessa presunção. Ora, ninguém pode ser sujeito e crítico a partir de fora, mediante a ação de pedagogos — só se é sujeito e crítico a partir de dentro. Portanto, como é que uma pedagogia qualquer pode arvorar-se a prever a produção de um aluno crítico e sujeito do conhecimento a não ser arrogando-se um direito divino de ler o interior do aluno sob as graças de algum deus Piaget? Há algo de fanatismo religioso no modismo construtivista que impera na quase totalidade das obras da pedagogia contemporânea.
Como essa lógica é um arrematado contra-senso, o que os construtivistas têm conseguido é exatamente o contrário — estão destruindo a escola e a criança. À força de centrar o conhecimento no aluno, a escola tem feito dele o umbigo da humanidade, reduzindo a educação aos seus instintos. Se, para o aluno, Galileu é chato, dane-se Galileu. O aluno já não se sente obrigado a fazer nenhum esforço para aprender nada e espera que o professor reduza todo o conhecimento da humanidade aos limites do seu prazer imediato, o que transforma muito professor em artista circense e a escola em Escolinha do Professor Raimundo. Muitas iniciativas pedagógicas premiadas nacionalmente e enaltecidas por revistas especializadas como a Nova Escola não passam de macaqueação com rótulo de educação. Exemplos não faltam: alunos que reduzem a história do Brasil a paupérrimas letras de rap; professores que vêem no filme Carlota Joaquina, de Carla Camuratti, um tratado de história; escolas que fazem de Lampião e Maria Bonita um melodrama da Globo em salas de 6ª série.
Profecia Determinista — A mensuração da história pelo presente, travestida de modernidade pedagógica, não passa de um perigoso anacronismo, que reduz o ser humano ao imediatismo das circunstâncias, como se o presente fosse, ao mesmo tempo, a razão de ser do passado e a profecia determinista do futuro. No caso do ensino de literatura, esse culto ao presente tem levado a uma indisfarçável assunção do modernismo ao cume das artes e da civilização. Como o poeta Alexei Bueno disse certa vez, é como se Homero tivesse existido apenas para justificar Mário de Andrade. Entretanto, há 128 anos, Machado de Assis (então um jovem com apenas 24 anos) já ensinava no artigo “O Instinto da Nacionalidade”: “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”. Seis anos depois, no artigo “A Nova Geração”, ele insistia: “Aborrecer o passado ou idolatrá-lo vem a dar no mesmo vício; o vício de uns que não descobrem a filiação dos tempos e datam de si mesmos a aurora humana, e de outros que imaginam que o espírito do homem deixou as asas no caminho e entra a pé num charco”.
É verdade que o ensino de literatura brasileira nas escolas sempre pecou pela excessiva periodização em escolas literárias, reduzidas a catálogo de autores associados a características estanques, num paroxismo positivista. Ao optar pela valorização do presente, sob a égide construtivista, o ensino de literatura passou a centrar-se no texto, o que, em tese, parece o ideal. Entretanto, acabou incorrendo em outro paroxismo: o metalingüismo, no aspecto formal, e a telenovelização, no aspecto dos conteúdos. Ao tornar secundário o diálogo da literatura com outros ramos do conhecimento, desprezando até mesmo a erudição de autores universais, a escola trata todo aluno do ensino médio como futuro professor de letras. Em todo o Brasil, e também em Goiás, os livros adotados nos vestibulares locais geram uma indústria paralela dos comentários e resumos, que ora transformam um simples romance de entretenimento numa exegese bíblica, tornando sua fruição enfadonha, ora, sintetizam o enredo de uma obra-prima universal numa mera triangulação amorosa, como ocorre freqüentemente com o Dom Casmurro, de Machado de Assis, vítima fácil desses dois extremismos.
E por que ao abordar um livro literário a escola não consegue o equilíbrio entre a análise crítica, mas não exegética, textual, mas não formalista, como convém a um aluno de segundo grau? Porque, para isso, ela precisaria dialogar, ao mesmo tempo, com o texto em questão, o mundo do autor e o mundo em geral, o que pressupõe a erudição dos grandes críticos, como um Otto-Maria Carpeaux. Só que a erudição, além de não ser moeda corrente nas escolas, tornou-se anátema entre os educadores — é vista como pedantismo, auréola abjeta dos positivistas. E os que a condenam são incapazes de perceber que a erudição é o desejável diálogo universal da humanidade consigo mesma contrapondo-se ao solilóquio redutor das especializações, este, sim, pedante, porque tenta reduzir o mundo ao seu próprio nicho cognitivo.
Ensino Empanturrado — Resgatar o papel da erudição na escola é uma tarefa que compete, sobretudo, à disciplina de literatura — se os neopedagogos deixassem. A literatura é ferramenta, por excelência, da interdisciplinaridade. Por intermédio dela é possível preencher duas gravíssimas lacunas da educação brasileira — a falta de uma história das ciências e de uma história das artes no currículo do ensino médio. Muito mais importante do que empanturrar o adolescente com baterias de equações — que jamais serão utilizadas por ele em outro contexto que não o da prova — seria melhor mostrar-lhe a história do desenvolvimento da matemática. O mesmo vale para a química de giz, cujo laboratório é o quadro, e para todas as outras disciplinas biológicas e exatas estudadas no ensino médio de um modo enciclopédico, que exige do pré-vestibulando um conhecimento às vezes muito mais abrangente e profundo do que aquele que lhe será cobrado posteriormente nas faculdades.
A recente tentativa de inclusão da filosofia e sociologia no currículo de 2º grau, por exemplo, partiu da constatação de que a escola há muito deixou de ser escola para se tornar uma linha de montagem. Entretanto, é pouco provável que a filosofia e a sociologia corrigiriam esse problema. Elas também foram afetadas pelo irracionalismo do mundo contemporâneo, ao menos em sua versão acadêmica, que no Brasil tem a USP por espelho. A arte e a ciência, juntas, é que talvez possam humanizar o ensino. Não apenas a arte-educação lúdica nem a feira de ciências utilitária, mas, sobretudo, uma história da arte e uma história das ciências que pudessem pôr o aluno em contato com os grandes gênios da história. Hoje, a pedagogia pensa ter descoberto (secundando os psicólogos) que não há razão sem emoção e que conhecimento também depende de afetividade. Ora, há quase 500 anos o poeta Luís de Camões já sabia disso e outros, antes dele, com outras palavras, também disseram que o homem não pode prescindir do engenho e da arte, da emoção e da razão, do apolíneo e do dionisíaco.
Toda arte verdadeira comporta uma intra-objetividade e toda verdadeira ciência nasce da intersubjetividade. A ciência, sob a superfície de certezas, esconde as águas profundas da subjetividade dos homens e pode tornar-se ambígua, escorregadia, máscara da realidade; enquanto a arte, sob a superfície de sonhos, emerge das águas torrenciais da objetividade dos homens e pode fazer-se precisa, límpida, instrumento de cognição. Mas esse diálogo entre emoção e razão, ciência e arte, não cabe nos limites de um só cérebro e seus cinco sentidos — é inapreensível, pois tem o tamanho do próprio universo, com tudo o que ele comporta de matéria e antimatéria. Na verdade, não se trata de um diálogo, mas de uma eterna luta e, como toda luta, seus resultados são imprevisíveis, daí a ilusão da pedagogia ao tentar educar para a criatividade. Uma criatividade que pudesse ser prevista e praticada em laboratório deixaria automaticamente de ser criatividade. Só há um modo de se educar alguém para a criatividade — materializando exemplos bem-sucedidos de criação humana. No caso da escola, criação artística ou científica, extraídas do repositório cultural das grandes civilizações, como queriam os essencialistas dos anos 30.
Cabe à escola mostrar como o mundo subjetivo costuma ser objetivado pelo cientista e como o mundo objetivo tende a ser subjetivado pelo artista. O filósofo da ciência Alexandre Koyré, numa resenha que publicou em 1954, em Haia, sobre o livro Galileo as Critic of the Arts (Galileu como Crítico de Artes), de Erwin Panofsky, mostra que o pensamento estético de Galileu (profundo conhecedor de literatura e artes plásticas) influiu decisivamente na sua física, levando-o a ignorar completamente as descobertas astronômicas de Kepler, seu companheiro na luta pelo reconhecimento do sistema de Copérnico. Esteta da harmonia, Galileu, como mostra Panofsky, não quis aceitar as órbitas elípticas dos planetas descobertas por Kepler por achá-las incompatíveis com a perfeição estética que, para ele, se traduzia no círculo. Da mesma forma, muito da física de Kleper emana de seu subterrâneo místico. Entretanto, nem Kleper nem Galileu consultaram o manual de Daniel Goleman, o autor de Inteligência Emocional, para produzir sua ciência, assim como Balzac ou Zola não precisaram dele para edificar uma literatura que vale por muita sociologia.
Síntese Necessária — Inteirando-se das obras desses autores é que o aluno, à sua maneira, pode entender a eterna dialética entre razão e emoção, fazendo sua própria síntese — longe dos olhos de babá da pedagogia, isto é, em seu interior. O que a escola pode fazer para contribuir com essa reflexão é proporcionar ao aluno um pouco de história da arte e das ciências, daí a importância que essas disciplinas poderiam ter no currículo. O estudo da literatura brasileira, por exemplo, vista não como catálogo de correntes literárias, mas como um diálogo com a história e a ciência, pode servir para essa reflexão. No 2º ano do ensino médio, por exemplo, os alunos costumam estudar o romantismo e o realismo, com sua corrente naturalista, dogmaticamente fiel ao progresso científico. É a hora de se introduzir o estudante no espírito científico que marcou fanaticamente o século XIX. Até a própria religião que surgiu naquele século, o espiritismo de Alan Kardec, é fundamentalmente cientificista, filho do positivismo de Comte, por sua vez, uma religião da ciência, com templos e cientistas-sacerdotes.
Curiosamente, foi no Brasil que tanto o positivismo quanto o espiritismo vingaram: além de ser o maior país espírita do mundo, o Brasil tem o ideal de “ordem e progresso” de Comte incrustado na Bandeira Nacional. Nada mais pertinente, portanto, do que levar o aluno brasileiro a refletir sobre essas relações entre artes, ciências e sociedade, que consolidam, no século XIX, as conquistas do Iluminismo imediatamente anterior e ajudam a conformar o progresso científico do século XX. Até porque é nessa fase que o aluno começa a refletir sobre o que fazer de seu futuro e essa reflexão profunda sobre a ciência — que implica em saber o que ele, aluno, tem a ver com ela — poderá ser possível a partir do diálogo interdisciplinar que será suscitado pela literatura e as artes. Algo que ajuda no próprio amadurecimento moral do aluno, desde que a escola crie ídolos positivos para a juventude — os grandes gênios da arte e da ciência que, superando seus defeitos individuais, foram capazes de deixar um legado reconhecido além de seu tempo.
No Brasil, dificilmente um jovem vai sonhar em ser um cientista, porque, no seu imaginário, não existe nenhuma figura de cientista, a ponto de ele achar que o Brasil só produz sambista e jogador, jamais cientistas ou filósofos. Que estudante do ensino médio sabe da existência de César Lattes, um ícone ainda vivo da física moderna, descobridor do méson-pi e quase ganhador do Nobel de Física? É claro que não é fácil criar esses ídolos a partir unicamente da escola, em face do poderio da televisão e do mercado juntos. Mas, como observa Giovanni Sartori, “a cultura audiovisual é inculta” e o dever da escola é rechaçá-la não imitá-la, como vem acontecendo. A escola tem o dever de tentar se contrapor à ditadura do imaginário imposta pela mídia. Ao valorizar demais o contexto e idealizar demais o aluno, o construtivismo se esquece que o jovem urbano médio é quase marionete da televisão. O grau de autonomia cognitiva da maioria dos alunos é apenas o suficiente para mantê-los entre as espécies superiores.
O que admira é que essa questão — tão crucial para a educação brasileira — raramente seja abordada em cursos e livros para preparação de professores. O discurso mecanicamente repetido de que o importante é “aprender a aprender”, que “professor é o que de repente aprende” e que “o aluno é construtor do conhecimento” parte do pressuposto ideal — para não dizer ilusório, ingênuo ou, simplesmente, alienado — de que todo aluno quer aprender, só carece de o professor ensiná-lo. Ora, isso é absolutamente falso. Para a maioria das pessoas, e não só dos jovens, conhecer é um castigo, como já sabiam o Gênesis e o Eclesiastes. Imaginar que o conhecimento é indolor e que toda atividade pedagógica tem de ser transformada num recreio é penalizar ainda mais o professor, que, ao longo das duas últimas décadas, além de não ter salário, já não tem prestígio nem goza do respeito de seus alunos.
Canga Fanática — Toda educação verdadeira tem que ser eclética em seus métodos, caso contrário, não é educação, é doutrinação — algo que o construtivismo e outras monomanias não percebem. Repetir, por exemplo, que a escola tradicional faz tábula rasa do aluno, que ela enfoca somente o professor, que ela trata o aluno como receptor passivo e que se pauta apenas pela memorização, atribuindo ao construtivismo qualidades positivas e contrárias, como costumam fazer os neopedagogos, é falsificar a realidade da educação. Não há metodologia absolutamente pura, com todos os defeitos ou com todas as qualidades. Apenas uma metodologia que fosse adotada somente entre anjos ou somente entre demônios, incluindo o professor, é que conseguiria essa façanha sobrenatural. Porque o meio influencia o método e a pureza da metodologia seria reforçada pela pureza de seu contexto.
Mas o mundo é misturado, por isso, a neopedagogia é um dogma como o neoliberalismo. Toda classe é heterogênea e os alunos estabelecem infinitas interações entre si, inclusive hierárquicas. O professor, limitado ser humano que é, não tem a menor possibilidade de prevê-las e monitorá-las todas. Portanto, haverá momentos em que, se não apelar para abordagens tradicionais, como a própria autoridade, ele se inviabiliza completamente como professor e passa a ser manipulado pelos alunos, especialmente pelos piores, que são os verdadeiros mandantes das escolas hoje.
Ao contrário que parece crer essa gente que deforma professores nos cursos de pedagogia, o mundo fora da sala de aula não é construtivista. Em casa, a criança aprende a andar, a falar, a comer, a usar o vaso, a partir de “abordagens” skinnerianas. E, na família, há uma inevitável hierarquia entre pais e filhos, que continua tradicional nos momentos decisivos. Se há impasse, o pai ou a mãe é que decidem, porque eles é que respondem juridicamente pelos filhos. Logo, se o construtivismo pode até ser promissor em determinadas circunstâncias, as abordagens tradicionais são imprescindíveis em muitas outras. Não perceber isso é achar que todo aluno cabe na canga fanática de um método só — caminho mais curto para se sonhar com um admirável mundo novo e antecipar, na prática, o pesadelo da hora dos ruminantes.
POR: José Maria e Silva
silvajm@uol.com.br
Opção (Goiânia), 21 out. 2001
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