A Idade Média, os monges e o progresso
Em síntese: O Prof. Léo Moulin, agnóstico ou ateu belga,
reconhece a benéfica influência do Cristianismo e, em especial, da Regra de São
Bento na evolução da cultura e da civilização. Mostra como a Regra de São
Bento, legislando para os monges, fez transbordar sobre toda a sociedade
medieval e posterior certos princípios de disciplina, diligência e ordem no
trabalho, que propiciaram a criação de grandes empresas industriais e
culturais. São Bento, aliás, hauriu das Escrituras Sagradas a sua mentalidade;
ora a Bíblia incute ao homem certo otimismo em relação à natureza, obra de Deus
Criador, que confiou ao casal humano o mandato de explorar e dominar as
criaturas inferiores. A mesma fonte bíblica deu a saber ao homem que o universo
foi criado com sabedoria e lógica; a própria razão humana, sendo dom de Deus,
merece a confiança do homem; conscientes disto, os medievais cultivaram a
inteligência, resultando daí grande número de Universidades e belas obras de
arte (catedrais, especialmente), que supõem dinamismo, coragem e saber
científico entre os homens da Idade Média. Esta, portanto, não foi o período
obscuro do qual sem o devido conhecimento de causa.
Costuma-se comentar a influência que o Calvinismo, fundado
no século XVI, exerceu sobre o desenvolvimento comercial e econômico dos países
que o adotaram. O senso religioso levou os calvinistas a se dedicarem
“religiosamente” às suas atividades profissionais, donde resultou (em parte, ao
menos) a rede colonial da Inglaterra e da Holanda.
Todavia é menos conhecida a influência sadia que a fé
católica exerceu sobre os monges e as populações medievais em favor do
progresso da civilização. Aliás, deve-se dizer que o Cristianismo, bem
entendido e vivido, foi e será sempre um
estímulo para a construção de um mundo
mais humano, fraterno e, por conseguinte, mais feliz.
O Prof. Léo Moulin, agnóstico e ateu, belga de 82 anos de
idade, tem-se manifestado sobre o assunto. Já em PR 310/1988, pp. 115-120 foi
publicada uma entrevista desse mestre sobre a Idade Média, acentuando os seus
valores positivos. Léo Moulin voltou à temática em 1990 por ocasião do nono
centenário do nascimento de São Bernardo (1090-1153), desta vez focalizado mais
explicitamente o papel dos monges da Idade Média no progresso da civilização.
Visto que a questão é de grande importância para dissipar equívocos, passamos a
resumir tópicos de um artigo do Prof. Moulin publicado na revista “JESUS”,
dezembro de 1990, pp. 103-107, com o título “Luminosissimo Medioevo!”
Hist igreja media menor Invenções e Descobertas
A Idade Média ocidental ocupa lugar importante na
história do desenvolvimento tecnológico, pois registrou uma série de invenções
e descobertas que lhe dão preeminência sobre quanto ocorreu na mesma época fora
do âmbito europeu. Sejam recordados: a bússola, as lentes de óculos, a roda com
aros, o relógio mecânico com pesos e rodas (“invenção mais revolucionária do
que a da pólvora e a da máquina a vapor”, conforme Ernst Junger), o canhão (em
1327), a caravela (em 1430), a própria imprensa, a ferradura de cavalo, que permite ao animal
correr sobre terrenos inóspitos, os moinhos de água, de maré, de vento…
Isto tudo fez que o Ocidente se encontrasse em melhores
condições de civilização do que outras partes do mundo no século XVI.
A Regra de São Bento
Antes de todas estas, houve outra grandiosa “invenção”, que é
a Regra de São Bento (+ 547).¹ Nesta encontramos elementos necessários ao bom
andamento de uma empresa moderna.
Com efeito. Além do Ora (Oração), São Bento ensina o
valor e a sistematização do Labora (Trabalho). Imagina, sim, o seu discípulo
como um operário (RB Prol 14) que trabalha com mãos e ferramentas na oficina do
Mosteiro (RB 4, 75-78). O trabalho é essencial à identidade monástica, seja o
manual, seja o intelectual, seja o artístico ou artesanal. No decorrer da
Regra, São Bento ilustra as motivações do Labora:
– o trabalho corresponde a um gênero de vida pobre, que
exige a labuta pessoal para poder manter-se; cf. RB 48,8;
– o trabalho é serviço à comunidade e aos hóspedes, a
exemplo do que fez Cristo; cf. Rb 48, 1-25; 53, 1-23;
– o trabalho é desenvolvimento dos talentos que Deus
entregou ao homem e cuja aplicação ele vai julgar; cf. Rb 4,75-77;
– o trabalho ajuda os pobres e evita a ociosidade, que é
inimiga da alma; cf. RB 48,1.
São Bento quer que o trabalho seja executado “bem”, “com
serenidade”, “sem tristeza” e “sem murmuração”; cf. RB 34,6; 35, 13; 40, 8s;
53, 18.
Trabalhar em comum é, para São Bento, um valor, tanto que
os monges culpados de faltas graves são excomungados não só da oração e da
refeição comunitárias, mas também do trabalho com os irmãos: “Que seja suspenso
da mesa e do oratório o irmão culpado de faltas mais graves… Esteja sozinho no
trabalho que lhe for determinado” (Rb 25, 1.3).
A Regra de São Bento, portanto, formou os monges (e,
consequentemente, a sociedade) no sentido da diligência e da disciplina do
trabalho. De modo especial,
ela incutiu (e incute) dois valores muito estimados no mundo industrial
moderno:
– a pontualidade. São Bento não transige a respeito.
Prevê sérias punições para quem chega atrasado à oração litúrgica ou ao
refeitório (RB 43); ao sinal dado de madrugada, levantem-se todos sem demora
(Rb 22); quem recebe uma ordem, deve executá-la prontamente (Rb 5);
– atenção ao que se faz. São Bento formula uma norma
decisiva: “Controlar a todo momento os atos de sua própria vida. Actus vitae
suae omni hora custodire” (RB 4,48). É preciso, pois,
estar presente de corpo e alma àquilo que se faz, sejam grandes, sejam pequenas
coisas. A Regra prevê punições leitura, à qual todos devem prestar atenção, de
modo que ninguém converse e só se ouça a voz do leitor (RB 38, 5). Haja
absoluta limpeza, especialmente na cozinha (RB 35,6-11). A perda ou a quebra de
qualquer objeto durante o trabalho requer satisfação da parte de quem comete a
falha (RB 46, 1-4).
São Bento também pede que os monges não se entristeçam se
a necessidade do lugar ou a pobreza exigirem que se ocupem em trabalhos
extraordinários, “porque então são verdadeiros monges se vivem do trabalho de
suas mãos, como também os nossos Pais e os Apóstolos” (RB 48,8).
Estes princípios de ordem ascética, inspirados pelo amor
à disciplina do Evangelho, contribuíam para que os mosteiros se tornassem
grandes centros agrícolas e artesanais em toda a Idade Média, irradiando em
torno de si amor ao trabalho, organização e método modelares para a
posteridade. Essa sistemática não tinha em vista simplesmente produção e lucro
materiais, mas era inspirada pelo espírito de fé e apoiada em razões
monásticas. Assim, por exemplo, um texto do século XI explica por que foi
adotado um moinho de água na comunidade: “…a fim de que os monges tenham mais
tempo para dedicar-se à oração”.
Em seu afã de trabalhar para exercer disciplina e evitar
a ociosidade (inimiga da alma), os monges dedicaram-se a quase todas as
atividades produtivas: exploraram minas de carvão, salinas, metalurgia,
marcenaria, construção… Assim, por exemplo, os monges cistercienses fabricaram
fornos para produzir tijolos grandes, dotados de furos para facilitar a sua
cozedura e manipulação; eram os chamados “tijolos de São Bernardo!. Montaram na
Borgonha fábricas de telhas, que eles espalharam por diversas regiões.
Aliás, a própria Regra de São Bento pede que o mosteiro
tenha em suas dependências tudo de que necessita para viver: “Seja o mosteiro
construído de tal modo que todas as coisas necessárias, isto é, água moinho,
horta e os diversos ofícios se exerçam dentro do mosteiro, para que não haja necessidade
de que os monges vagueiem fora, pois de nenhum modo isto convém às suas almas”
(RB 66,6s). Ora esta norma da Regra não podia deixar de ser forte estímulo para
a criatividade dos monges. O capítulo 57 da mesma Regra trata dos artesãos que,
com a autorização e a bênção do Abade, trabalham no mosteiro como monges, e
pede que os preços dos respectivos artefatos sejam mais baixos do que os preços
do comércio de fora: “Quanto aos preços, não se insinue o mal de avareza, mas
venda-se sempre um pouco mais barato do que pode ser vendido pelos seculares,
para que em tudo seja Deus glorificado” (RB 57, 7-9).
Sabemos ainda que em 1215 os maiorais da Inglaterra,
tanto leigos quanto clérigos, obtiveram do rei João sem Terra o reconhecimento
da Magna Carta (Libertatum), Grande Carta das Liberdades, que promulgava
direitos da população e que se tornou o fundamento da Constituição liberal da
Inglaterra e o embrião dos posteriores sistemas políticos parlamentares. Ora,
um século antes disto, em 1115 a Ordem Cisterciense¹ concebera o sistema de
governo mais prático que se conhece: o Capitulum Generale (Capítulo Geral),
assembleia internacional da qual fazem parte representantes de todos os
mosteiros e dotada de poder legislativo. A instituição do Capitulum Generale foi
adotada por Ordens e Congregações Religiosas posteriores e tornou-se modelo
para o regime de muitas sociedades de caráter
internacional.
É preciso ainda apontar duas características da
mentalidade medieval, de grande importância na história subsequente.
Duas notas marcantes
Confiança na razão
Para os medievais, o mundo era obra de um Deus sábio e
lógico, distinto do próprio mundo (em oposição a todo panteísmo). Por
conseguinte, o mundo lhes aparecia como algo que pode ser conhecido pelo homem
mediante a sua razão; não é um fantasma nem uma armadilha. Dizia no século XII
o teólogo francês Guilherme de Conches: “Deus respeita as próprias leis”. E no
século seguinte Santo Alberto Magno (+ 1280) afirmava: “Natura est ratio. A
natureza é a razão ou é racional”. Em consequência, os estudiosos medievais se
aplicaram ao raciocínio e à pesquisa (como a podiam realizar na sua época) com
plena confiança no acume da razão, sem, porém, cair no racionalismo, pois acima
da razão admitiam as luzes e as verdades da fé…
Um dos exemplos mais clássicos desse tipo de estudiosos é
o inglês Rogério Bacon (1214-1294), chamado “Doutor Admirável”. Ingressou na
Ordem dos Franciscanos em 1257 e pôs-se a comentar as obras de Aristóteles.
Posteriormente dedicou-se à pesquisa científica, recorrendo a um método
experimental, que foi precursor do método adotado por Francis Bacon
(1561-1626); assim procedendo, fez descobertas no setor da ótica. Planejou
diversas invenções mecânicas: máquinas a vapor, barcos máquinas voadores… Em
seus escritos encontrou-se uma fórmula da pólvora, que ele pode ter tomado dos
árabes numa época em que os europeus quase não a conheciam. Deixou obras
famosas: Opus Maius, Opus Minus e Opus Tertium.
Os resultados dessa confiança dos medievais na razão
humana fizeram-se sentir nos séculos subsequentes: em 1608 contavam-se mais de
cem Universidades na Europa e nenhuma no resto do mundo (exceto na América
Latina, onde os espanhóis expandiam a sua cultura). Dessas Universidades, mais
de oitenta tiveram origem na Idade Média, como genuína expressão da cultura
medieval. Diz-se com razão que as Universidades e as catedrais exprimem
autenticamente a Idade Média; na verdade, os medievais atingiram o primado mundial
de altura de cúpula na catedral de Amiens (1221), com 42,30 metros, mede 142
metros de altura: só foi ultrapassada pela Torre Eiffel de Paris em 1889, com
320 metros.
Dinamismo
A Escritura Sagrada transmite aos seus leitores uma
atitude dinâmica em relação ao universo que os cerca. Logo em suas primeiras
páginas formula o desígnio divino: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa
semelhança; domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra” (Gn
1, 26). E após a criação do homem se lê a ordem divina: “Enchei a terra e
submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais
que rastejam sobre a terra” (Gn 1, 28).
O salmo 8, por sua vez, canta o poder do homem sobre os
seres que o cercam:
“Que é o homem para que dele te recordes?… e o filho do
homem, para que dele tenhas cuidado? Não obstante, Tu o fizeste um pouco
inferior aos anjos…e lhes deste poder sobre as obras de tuas mãos, tudo
colocaste debaixo dos seus pés”.
No Novo Testamento lê-se que Cristo, ao encerrar sua
missão pública, mandou aos apóstolos que fossem pregar o Evangelho no mundo
inteiro; cf. Mt 28, 18-20.historiaigrejadademedia
Por conseguinte, a atitude do esforço, da luta, do empreendimento,
da resposta ao desafio…é muito familiar ao cristão. Pode-se dizer que foram os
cristãos que realizaram os progressos da ciência (tenha-se em vista o mundo
ocidental comparado com o oriental ou asiático e africano!), as grande
aventuras da conquista intelectual, econômica, marítima… Foram otimistas e
dinâmicos, conseguindo belos e valiosos resultados.
Estas poucas observações são suficientes para percebermos
a notável contribuição do Cristianismo para o avanço da cultura, da ciência e
da civilização… na história da humanidade. E, dentro do Cristianismo, merece
certamente relevo especial o monaquismo ocidental tal como São Bento (+ 547) o
concebeu e a Ordem Cisterciense, com São Bernardo à frente, o desenvolveu.
***
¹ Citaremos a Regra de São Bento usando a sigla RB; os
números seguintes indicarão respectivamente capítulo e versículo(s). A
abreviatura Prol significa Prólogo.
É de notar que não sem motivo o Papa Paulo VI em 1964
declarou São Bento “Patrono do Ocidente”. Este deve muitos dos seus valores aos
escritos e à obra de São Bento.
¹Cisterciense é o monge Cister; segue a Regra de São
Bento tal como foi entendida pelos reformadores de Cister, entre os quais está
São Bernardo de Claraval (+ 1153).
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