Alteração do decreto de criação da Força Nacional é inconstitucional e quebra pacto federativo, na medida em que confere ao Poder Executivo força policial própria
Instituída
por César Augusto, primeiro dos grandes imperadores de Roma, a Guarda
Pretoriana foi um corpo militar especial, destacado das legiões romanas
ordinárias, que serviu aos interesses pessoais dos imperadores e à segurança de
suas famílias. Era formada por homens experientes, recrutados entre os
legionários do exército romano que demonstrassem maior habilidade e
inteligência no campo de batalha. No seu longo período de existência (mais de
três séculos) a Guarda notabilizou-se por garantir a estabilidade interna de
diversos imperadores, reprimindo levantes populares e realizando incursões
assassinas em nome da governabilidade do império.
Passou quase
despercebido mas, há algumas semanas, a Presidência da República publicou no
Diário Oficial o decreto n.º 7.957/2013, que, dentre outros, alterou o decreto de criação da Força Nacional de Segurança Pública. A partir daí, o Executivo
passou a contar com sua própria força policial, a ser enviada e “aplicada” em
qualquer região do país ao sabor de sua vontade.
Numa
primeira análise, chamou a atenção de alguns jornalistas e profissionais da
causa ambiental a criação da “Companhia de Operações Ambientais da Força
Nacional de Segurança Pública”. Essa nova divisão operacional dentro da Força
Nacional terá por atribuições: apoiar ações de fiscalização ambiental, atuar na
prevenção a crimes ambientais, executar tarefas de defesa civil, auxiliar na
investigação de crimes ambientais, e, finalmente, “prestar auxílio à
realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais
negativos”.
Inconstitucionalidade
A criação dessa companhia especial, seguida da operação de guerra que invadiu terras, inclusive áreas de caça das aldeias indígenas do povo Munduruku, acabou por obscurecer outra pequena alteração efetuada pela Presidência no ato de criação da Força Nacional (decreto 5.289/2004), mais especificamente sobre a legitimidade para solicitar o auxílio dessa tropa.
A criação dessa companhia especial, seguida da operação de guerra que invadiu terras, inclusive áreas de caça das aldeias indígenas do povo Munduruku, acabou por obscurecer outra pequena alteração efetuada pela Presidência no ato de criação da Força Nacional (decreto 5.289/2004), mais especificamente sobre a legitimidade para solicitar o auxílio dessa tropa.
O art. 4º do
decreto original tinha a seguinte redação:
“Art. 4º A Força Nacional de Segurança Pública poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo Governador de Estado ou do Distrito Federal.
“Art. 4º A Força Nacional de Segurança Pública poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo Governador de Estado ou do Distrito Federal.
Após a
alteração, passou a vigorar assim:
“Art. 4º A Força Nacional de Segurança Pública poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo Governador de Estado, do Distrito Federal ou de Ministro de Estado.”
“Art. 4º A Força Nacional de Segurança Pública poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo Governador de Estado, do Distrito Federal ou de Ministro de Estado.”
A partir de agora, qualquer ministro pode solicitar o emprego da Força Nacional para defender os interesses do governo federal, sem a necessidade de qualquer autorização judicial, nem mesmo aquiescência do governo do estado
A inclusão dessas cinco palavras mágicas ao final do artigo 4º acabou por subverter por completo a razão de ser do decreto e, de quebra, burlou as determinações da Constituição Federal sobre a repartição de responsabilidades entre os entes da Federação (municípios, estados e União), o que pode ser considerado inclusive como quebra do pacto federativo.
A partir de
agora, qualquer ministro de Estado (todos eles subordinados à Presidência) pode
solicitar ao Ministério da Justiça o emprego da Força Nacional de Segurança
Pública em qualquer parte do país, para defender os interesses do governo
federal, sem a necessidade de qualquer autorização judicial, nem mesmo
aquiescência do governo do estado em questão.
Para
entender melhor a gravidade da situação, é preciso ter em mente que a Força
Nacional de Segurança Pública não é uma polícia, mas um “programa de cooperação
federativa” (art. 1º do decreto), ao qual podem aderir livremente os governos estaduais, e cujo
objetivo é a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio” em situações excepcionais em que as polícias militares dos estados
necessitem, e peçam, o apoio de tropas vindas de outros estados.
Isso porque
a Constituição Federal determina que a responsabilidade por “polícia ostensiva e a
preservação da ordem pública” é das polícias militares dos estados,
subordinadas aos respectivos governadores (art. 144, §§ 4º e 5º). À União
restam duas possibilidades: intervenção federal no estado (art. 34), ou
decreto de estado de defesa (art.136), ambas situações excepcionalíssimas de
garantia da segurança e integridade nacionais, em que serão acionadas as Forças
Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica).
A chave para
compreender a mudança é que, até o mês passado, era preciso “solicitação
expressa do respectivo Governador de Estado ou do Distrito Federal” para motivar
o envio da Força Nacional de Segurança Pública a qualquer parte do país, por
tratar-se essencialmente de um programa de cooperação federativa entre estados
e União.
Esse contingente militar de repressão poderá ser usado contra populações afetadas pelas diversas obras de interesse do Governo
Esse contingente militar de repressão poderá ser usado contra populações afetadas pelas diversas obras de interesse do Governo, que lutam pelo direito a serem ouvidas sobre os impactos desses projetos nas suas próprias vidas e no direito à existência digna, tal como já está ocorrendo com os ribeirinhos e indígenas do rio Tapajós.Agora não mais. A recente alteração do art. 4º do decreto 5.289/2004, transformou a Força Nacional de Segurança Pública na nova Guarda Pretoriana da presidente Dilma Rousseff. Retirou das mãos dos estados a responsabilidade pela polícia ostensiva e preservação da ordem pública, nos locais em que os ministros entenderem ser mais conveniente a atuação de uma força controlada pelo Governo Federal.
Não por
acaso, essa profunda alteração no caráter da Força Nacional foi levada a cabo
sem maiores alardes, no corpo de um decreto que tratava de outros assuntos. A inconstitucionalidade do ato é
evidente, viola uma série de regras e princípios constitucionais além de
atentar contra o próprio pacto federativo, um dos poucos alicerces da jovem
república brasileira.
* João
Rafael Diniz é advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais – SP
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